"indivíduo" versus "multidão"
Filosofia

"indivíduo" versus "multidão"



Toda multidão é uma multidão heterogênea, mas nenhum indivíduo o é. Cada indivíduo é uma consciência autêntica. No momento em que ele se toma parte da multidão, ele perde a sua consciência; então ele é dominado pelo coletivo, pela mente mecânica.


Eu não quero multidão alguma no mundo. Não importa se eles se juntaram em nome de religiões, ou em nome de nacionalidades, ou em nome de raças. Como tal, a multidão é feia, e as multidões cometeram os maiores crimes no mundo, porque a multidão não tem consciência. Ela é uma inconsciência coletiva.

A consciência torna a pessoa um indivíduo - um pinheiro solitário dançando ao vento, um solitário e ensolarado pico de montanha em sua completa glória e beleza, um solitário leão e seu rugido tremendamente belo que ecoa por quilômetros nos vales.

A multidão é sempre de ovelhas, e todo o esforço do passado tem sido o de converter cada indivíduo em uma peça de engrenagem, em uma parte morta de uma multidão morta. Quanto mais inconsciente ele é, e quanto mais o seu comportamento é dominado pela coletividade, menos perigoso ele se toma. Na verdade, ele se toma quase inofensivo. Ele não pode destruir nem mesmo sua própria escravidão.

Pelo contrário, ele começa a glorificar sua própria escravidão - sua religião, sua nação, sua raça, sua cor. Essas são as suas escravidões, mas ele começa a glorificá-las. Como indivíduo ele não pertence a nenhuma multidão. Toda criança nasce como um indivíduo, mas raramente um homem morre como um indivíduo.


Entre o seu nascimento e a sua morte, a sua dança deveria permanecer um consciente, um solitário alcançar as estrelas... sozinho, incorruptível - um espírito rebelde. A menos que você tenha um espírito rebelde, você não tem espírito algum. Não existem outros tipos de espíritos. Além disto, não existe Deus* e nem qualquer templo de Deus* (*ver nota no rodapé). Em liberdade, você pode entrar no templo.

Em uma coletividade, em uma multidão, você simplesmente se apega aos cadáveres do passado. Um homem, vivendo de acordo com a multidão, parou de viver. Ele está simplesmente seguindo como um robô. Computadores não podem responder a uma questão nova. Eles podem responder somente a questões para as quais informações já lhes foram dadas. Naturalmente - eles não têm inteligência, eles têm somente um sistema de memória, um sistema de arquivo que registra. E claro, eles são perfeitos em sua eficiência.

Mas o homem na multidão tem sempre agido cegamente. Se você puxa o mesmo homem para fora da multidão e lhe pergunta: “O que você estava fazendo? Você pode fazer isso sozinho, por você mesmo?” Ele se sentirá embaraçado. E você ficará surpreso ao ouvir a sua resposta: “Por minha própria conta não posso fazer uma coisa tão estúpida, mas quando estou numa multidão, algo estranho acontece.”

Por vinte anos vivi em uma cidade que era dividida proporcionalmente, meio a meio, entre hindus e muçulmanos. Eles eram igualmente poderosos, e quase todo ano aconteciam motins. Eu conhecia um professor na universidade onde eu ensinava. Eu nunca poderia ter sonhado que esse homem poderia atear fogo em um templo hindu; ele era um cavalheiro — gentil, bem-educado, de boa cultura. Durante um motim entre hindus e muçulmanos, eu estava observando da calçada. Os muçulmanos estavam queimando um templo hindu, os hindus estavam queimando uma mesquita muçulmana.

Eu vi esse professor envolvido na queima do templo hindu. Eu o puxei para fora e lhe perguntei:“Professor Farid, o que você está fazendo?”

Ele ficou muito envergonhado. Ele disse: “Sinto muito, eu me perdi na multidão. Porque todos os outros estavam fazendo isso, eu esqueci de minha própria responsabilidade. Pela primeira vez eu me senti tremendamente livre de responsabilidade. Ninguém poderia me acusar. Era uma multidão de muçulmanos, e eu era apenas parte dela.”

Em uma outra ocasião, uma relojoaria muçulmana estava sendo saqueada. Ela tinha a mais preciosa coleção de relógios. Um velho sacerdote hindu... as pessoas que estavam roubando esses relógios e destruindo a loja — eles haviam assassinado o dono da loja - eram todos hindus.

Um velho sacerdote que eu conhecia estava de pé nas escadas, gritando com muita raiva para as pessoas: “O que vocês estão fazendo? Isso vai contra nossa religião, contra nossa moralidade, contra nossa cultura. Isso não está certo.”

Eu estava vendo toda a cena de uma livraria no primeiro andar do prédio exatamente em frente à loja, do outro lado da rua. A maior surpresa ainda estava por vir. Quando as pessoas haviam levado todos os artigos de valor da loja, restou somente um velho relógio - muito grande, muito antigo. Vendo que as pessoas estavam indo embora, o velho colocou esse relógio sobre os seus ombros. Para ele era difícil carregá-lo, porque o relógio era pesado demais. Eu não podia acreditar em meus olhos! Ele estivera impedindo as pessoas, e esse era o último artigo da loja.

Eu tive que descer da livraria e parar o sacerdote. Eu perguntei-lhe: “Isso é estranho. O tempo todo você estava gritando, ‘Isso vai contra a nossa moralidade! Isso vai contra a nossa religião, não façam isso!’ E agora você está pegando o maior relógio da loja.”

Ele replicou: “Eu gritei o bastante, mas ninguém ouviu. E então, finalmente veio-me a ideia de que eu estou simplesmente gritando e desperdiçando o meu tempo, e todos os outros estão pegando alguma coisa. Então, é melhor pegar este relógio antes que algum outro o pegue, porque ele era o único artigo deixado.”

Eu perguntei: “Mas o que aconteceu com a religião, a moralidade, a cultura?”

Ele disse isto com uma cara envergonhada - mas disse: “Quando ninguém se preocupa com religião, cultura e moralidade, por que eu deveria ser a única vítima? Também sou parte da mesma multidão. Fiz o possível para convencê-los, mas se ninguém vai seguir a religião, a moralidade e o caminho correto, então não vou ser apenas um perdedor e parecer um estúpido parado aqui. Ninguém nem mesmo me escutou, ninguém me deu atenção.” E ele levou o relógio.

Eu vi pelo menos uma dúzia de motins naquela cidade, e perguntei aos indivíduos que haviam participado de atos incendiários, de assassinatos, de estupros: “Você é capaz de fazer isso sozinho, por você mesmo?” E todos eles, sem exceção, disseram: “Por conta própria não o podemos fazer. Foi porque tantas pessoas estavam fazendo aquilo e não havia responsabilidade pessoal. Não tínhamos que responder por aquilo, a multidão era a responsável.”

O homem perde tão facilmente sua pequena consciência no oceano coletivo da inconsciência. Essa é a causa de todas as guerras, de todos os motins, de todas as cruzadas, de todos os assassinatos.

Indivíduos cometeram muito poucos crimes comparados aos da multidão. E as razões dos indivíduos que cometeram crimes são totalmente diferentes - eles nasceram com uma mente criminosa, nasceram com uma química criminosa, necessitam de tratamento. Mas o homem que comete um crime porque ele é parte de uma multidão nada tem que deva ser tratado. Tudo o que é necessário é tirá-lo da multidão. Ele deveria ser limpo; limpo de todas as escravidões, limpo de todo o tipo de coletividade. Ele deveria se tomar um indivíduo novamente - assim como era quando veio ao mundo.

As multidões devem desaparecer do mundo. Somente indivíduos deveriam permanecer.

Então, os indivíduos podem ter encontros, os indivíduos podem ter confraternizações, os indivíduos podem ter diálogos. No momento, sendo parte de uma multidão, eles não são livres, nem mesmo conscientes para terem um diálogo ou uma comunhão. Somente o indivíduo pode ser o rebelde e o novo homem, a base para uma humanidade futura.

As pessoas são imitadoras. Não estão agindo por conta própria; estão reagindo. É assim que a mente coletiva funciona - sempre de acordo com alguma outra pessoa. Contra ou a favor, não importa; conformista ou não-conformista, não importa. Mas ela está sempre dirigida, motivada, comandada por outros. Deixada por si mesma, ficará completamente perdida sobre o que fazer.

Estou ensinando o meu povo a ser meditador: a serem pessoas que possam desfrutar a solidão, que possam respeitar a si mesmas sem pertencerem a qualquer multidão, que não vendem as suas almas por recompensa, honraria, respeitabilidade e prestígio algum que a sociedade possa lhes dar. A sua honra, o seu prestígio e o seu poder estão dentro de seus próprios seres - na sua liberdade, no seu silêncio, no seu amor, na sua ação criativa - e não em sua reação. O que os outros fazem não é o que determina a sua vida.
(...)


excertos extraídos da obra "O Rebelde: O Verdadeiro Sal da Terra", de Osho 

* a frase "Além disto, não existe Deus e nem qualquer templo de Deus", não significa absolutamente que o autor defenda a inexistência de Deus. Lendo a frase sem tirá-la de seu contexto, podemos entender que somente sendo conscientes (tendo o que ele chama de 'espírito rebelde'), é que se tem um espírito real. Não há outros tipos. Só preenchendo esta condição (não sendo um imitador na multidão), é que Deus existe. O texto diz literalmente: "Além disto (quer dizer, fora desta condição), Deus não existe". 

Eu me pergunto: que tipo de 'Deus' iria querer sujeitos reduzidos à condição de escravos, de massa humana inconsciente e que responde mecanicamente aos instintos mais básicos do mimetismo animal? 
Assim, o autor enfatiza que Deus só existe no interior de um sujeito que conserve íntegra sua individualidade (que não se  confunde com o individualismo); e defende a polêmica tese de que só há Deus num sujeito que não se dilui na multidão, mas que tem a coragem de assumir pessoal e plenamente a responsabilidade pelo que faz. Nesta inconformidade, esta pessoa não se rende ao "imitacionismo", nem ao falso moralismo. Então, concluímos que só nesse ambiente de maturidade espiritual é que pode haver um Deus também existente. O indivíduo nasceu sozinho, morrerá só e será julgado só (embora multidões possam ter testemunhado seu nascimento ou falecimento).  



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