As vacas sagradas da educação brasileira
Filosofia

As vacas sagradas da educação brasileira


Por Celso Antunes

A religião hinduísta promove a adoração dos animais e, de forma especial, a das vacas. Concebida como mãe da humanidade pelo valor simbólico do leite para a vida, e, também, porque amamenta seus filhos sem esperar troca ou compensação. Matar uma vaca constitui sacrilégio imperdoável e é por esse motivo que, quando existe algo intocável, usa-se a expressão "vaca sagrada". A educação brasileira, como não poderia deixar de ser, possui também itens intocáveis, afirmações falsas, mas, que de tanto serem repetidas como autênticas, parecem ter se transformado em verdades que ninguém ousa discutir. Esta pequena crônica busca o sacrilégio de tentar demonstrar algumas dessas tolas falácias, verdadeiras "vacas sagradas" que não se ousa debater. Vamos a elas.


1. A educação brasileira só poderá melhorar quando aumentar a carga horária recebida pelos alunos.
A aula, como tradicionalmente é concebida no Brasil, constitui, quase sempre, um espaço em que se transmite informação. Mais aulas, por meio da estratégia do discurso, representam apenas volume de informação maior, inutilidade utópica que não leva ninguém a aprender, apenas acumular. O papel da escola é ensinar o aluno a usar as informações para refletir, pensar, argumentar, pesquisar, ligar-se ao mundo, solidarizar-se e agir. Dessa forma, precisamos de mais situações de aprendizagens desafiadoras, propostas de momentos de criatividade, reflexão e experimentos. Não mais aulas expositivas que nada fazem para o verdadeiro sentido do crescimento humano que tanto se deseja. A jornada de estudos e não o número de aulas é que necessita crescer. Os brasileiros passam seis anos em sala de aula e a média é de doze anos em países verdadeiramente desenvolvidos.

2. A educação brasileira necessita promover cidadania, formar consciências.
É claro que nossa escola necessita formar cidadãos, mas essa preocupação não deve anteceder a importância de promover conhecimentos essenciais, ensinar a ler e compreender, operar símbolos numéricos, perceber a magnitude do avanço científico e a importância do espaço e do tempo na compreensão do momento que se vive. Buscar cidadania, construir valores, ensinar administrar emoções é essencial ao ser humano, mas não é o principal de uma excelente escola e, não poucas vezes, se enfatiza com tanta energia a busca dessa "educação holística" que se esquece de ensinar o essencial de se subir escada, começando sempre pelos primeiros degraus.

3. A excelência de uma boa educação começa por uma melhoria salarial urgente.
Em muitos lugares, vários professores, efetivamente, ganham uma miséria, mas são lugares onde qualquer outro profissional se encontra na mesma situação. O salário de professores é uma vergonha nacional, como é também o de médicos, enfermeiros, nutricionistas e muitos outros. A comparação entre o salário dos docentes com o de outras categorias, desconsidera aspectos diversos como a jornada de trabalho, férias adicionais por atividades extras e outras vantagens. Mal maior que falar do salário do professor sem o comparar com o de outras categorias profissionais é tentar comparar o que no Brasil se ganha, com ganhos em países muito mais ricos. Os professores brasileiros, em geral, recebem o salário com mais de 50% acima da média nacional, enquanto que em países altamente desenvolvidos essa remuneração é 15% menor, ainda que em termos brutos se paga muito mais por uma aula lá que uma aqui, como se paga muito mais para qualquer profissional quanto no Brasil.

4. Apenas a escola particular pode proporcionar ensino de qualidade excelente.
Os resultados dos exames realizados por estudantes em avaliações do SAEB, do ENEM e de provas aplicadas por organismos internacionais não cansam de reiterar que existem escolas públicas admiráveis e escolas particulares enganosas. Boas escolas se fazem com professores que se reciclam e estudam sempre, com aulas abertas para que todos aprendam com todos, com ajudas específicas a alunos com dificuldades. Para organizar esse tripé a escola pode ser pública ou particular. O que, na maior parte das vezes, se constata é que os alunos das escolas particulares trazem para a instituição uma situação cultural, familiar e socioeconômica melhor e, por isso, aprendem com mais facilidade e melhor. Além disso, em muitas escolas particulares não há mecanismos burocráticos para se colocar na rua profissional incompetentes.

5. A educação somente vai melhor quando o País investir mais.
O Brasil gasta muito mal em educação, joga dinheiro bom em causas ruins, mas não investe pouco. Enquanto gastamos 3,4% de nosso PIB na educação básica, em países da OCDE (Organização formada por países da Europa e pelos Estados Unidos) esse gasto corresponde a 3,5%. A tragédia é que nesses mesmos países é considerado normal se gastar duas vezes mais com a formação de alunos em cursos superiores e o Brasil gasta nada menos que dezessete vezes mais. Generoso e perdulário com o ensino superior que abriga apenas 20% dos jovens, fazemos demagogia e inventamos lorotas em investimentos concretos para a educação infantil e ensino básico, em que a verdadeira mudança de paradigma educacional necessita acontecer. A China gasta apenas 2% de seu PIB ao ano em educação e vem conquistando progressos extraordinários e o Brasil, gastando quase o dobro, apresenta aos olhos do mundo resultados pífios. Com toda essa dinheirama jogada no ensino superior ocupamos o 23º lugar em uma lista de 25 países quanto à publicação de artigos científicos.

6. Precisamos avaliar mais vezes nossos alunos para uma radiografia mais perfeita sobre sua aprendizagem.
Não adianta aumentar o número de exames, provas, concursos e tudo o mais se continuarmos a bater na tecla de uma avaliação quantitativa que não mostra nada, que não diagnostica coisa alguma. Não se afere aprendizagem com questões robotizadas ou testes de escolhas múltiplas, mas com condução de competências efetivas, habilidades essencialmente conquistadas. Preocupa-nos em saber se nossos profissionais aprendem ou não o nome do rio mais comprido, da montanha mais alta e dos gerúndios lingüísticos, mas nada temos para aferir se a escola realmente transformou o aluno, tornando-o mais capaz de produzir, pesquisar, argumentar, viver, realizar, solidarizar e agir. Ou aprendamos a avaliar ou abandonemos críticas em relação a resultados que em nada resultam.

É importante que saibamos respeitar o culto hinduísta às vacas, mas é essencial perceber que estamos no Brasil e que nossa educação requer o sacrifício de tolices intocáveis, afirmações mentirosas, que de tanto serem ditas vão, como tudo neste País, ganhando cores de verdade.

Celso Antunes é mestre em Ciências Humanas e especialista em Inteligência e Cognição. Membro consultor da Associação Internacional pelos Direitos da Criança Brincar, reconhecido pela UNESCO. Autor de cerca de 180 livros na área educacional.

Fonte:
Gestão Educacional - Jornal Virtual 105 - 24/03/09





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