Quando falamos de cidadania, quase involuntariamente a nossa memória cultural encaminha-nos para a Grécia da Antiguidade, mais particularmente para Atenas, onde, de forma mais clara e sistemática, se forjaram os conceitos políticos que, no essencial, ainda hoje nos inspiram, quando se trata de refletir sobre as nossas instituições, e sobre o modo como funcionam (ou não), tendo em conta o concreto pano de fundo histórico em que viram as luzes do dia.
Os cidadãos eram chamados a intervir no dia-a-dia da ?pólis?, através dos conselhos, das assembléias, dos tribunais, interpelados a pronunciarem-se sobre os diferentes aspectos da vida política de Atenas. Este regime de governo, que passou a ser conhecido como democracia, baseava-se, em primeira linha, na liberdade que era concedida àqueles que queriam intervir na vida da sua cidade, na noção de dever que impendia sobre cada um, relativamente à atenção que deviam dispensar aos assuntos de ?estado?.
A democracia era uma forma de participação direta dos cidadãos. Em que a liberdade de pensar, falar, intervir e decidir, constituía a matriz idiossincrática de Atenas, de tal modo incisiva, que a sua memória nunca foi perdida através dos tempos. Orgulhavam-se, assim, os Atenienses de disporem de igualdade nos direitos, no falar e no poder .
A Cidadania, como a devemos entender nos nossos dias, é não só uma relação que se estabelece entre determinada pessoa e o Estado, mas também entre os cidadãos deste, permitindo estruturar uma aliança política entre os seus intervenientes. A Cidadania é uma relação política, um estatuto de liberdade e de responsabilidade. Um compromisso resolvido com prioridade da Lei, entendida como conjunto de regras fundamentais de organização, de funcionamento, de comportamento e convivência da Comunidade, em que o Estado deve olhar para os seus cidadãos como o seu fundamento, não como meros instrumentos de interesses que não pertencem à maioria governada, mas àqueles que governam, aparentando o seu nome e representação, e em que aqueles têm, por seu lado, a liberdade efetiva de participar, conformar e rever as decisões que digam respeito ao seu viver individual e social.
A teoria da separação dos poderes desenhada por Montesquieu toma a unidade do poder originário, a unidade do titular desse poder (o Povo), como ponto de partida para a pluralidade sistemática da distribuição daquele em poderes funcionalmente distintos, por vários representantes do detentor originário, para que a limitação e a moderação do seu exercício constituam uma garantia acrescida, relativamente à comunidade que permite a sua delegação.
A liberdade política do cidadão impõe a divisão da autoridade política em poder Legislativo, Executivo e Judiciário, como forma mais eficaz de promover a Liberdade, entregando o seu exercício a diferentes indivíduos, atuando independente mas colaborando uns com os outros, mantendo como perspectiva primeira e atuação o bem comum dos os cidadãos.
O Poder Soberano, não é, assim, mais do que a autoridade dos seus concidadãos, que nele delegam a tarefa de zelar pelos seus direitos e interesses, tendo por referência a Lei dirigida a todos, igualmente aplicável, de modo que essa tarefa é apenas a continuação do direito dos cidadãos de intervir nos assuntos que lhes dizem respeito, dispondo dos instrumentos naturais que permitem essa intervenção, que deviam ser comuns a toda a Humanidade, como são: o pensar, o discutir, o criticar de forma livre, individual ou coletivo, mas mediada por formas que permitem a aplicação prática dessa intervenção.
Este exercício de poder está limitado, para além do mais, pelo outros poderes políticos, como estes devem estar por aquele, na arquitetura construída por Montesquieu, que quis acreditar na divisão, na especialidade, na independência, na colaboração, como formas de limitação possível do Poder, que pela sua própria natureza, ou pela natureza dos homens que o exercem, pode tão facilmente transformar-se num instrumento de opressão e submissão, em vez de ser apenas um meio de garantir o bem-estar daqueles que em última instância dele devem beneficiar, por serem a sua fonte originária.
Com a intrínseca Liberdade que cabe a todos que se reivindicam Cidadãos, exercendo o livre pensar, o livre expressar desse pensamento, que presidem à inteligência de todos nós, e que devem fundar o espírito crítico da atividade política que cabe a cada um e a todos os elementos duma sociedade que adota a Democracia como forma de governo.
Há momentos, na História, no viver social, na vida individual, em que se conjugam fatores que tornam inadiável um querer fazer, não porque exprima um capricho qualquer, mas antes porque as preocupações se acumularam, porque se detectam disfunções a prosperar, porque no fundo, um mal-estar se instalou e recusa-se a permanecer mudo. Em que o silêncio é a palavra da desistência.
A Liberdade é a alma da Democracia. A palavra crítica o seu melhor arauto, a sua melhor defensora. Daqueles que a garantem deve ser exigido a sua defesa. Que melhor forma haverá para cumpri-la, senão exercê-la? É esse o desafio que hoje enfrentamos.