Filosofia
Dialogismo, Polifonia e Intertextualidade
Dialogismo, Polifonia e Intertextualidade
Para Mikhail Bakhtin o dialogismo é a condição do sentido do discurso, da linguagem. Todos os textos são dialógicos porque são resultantes do embate, do confronto de muitas vozes sociais. O dialogismo discursivo desdobra-se em dois aspectos: - o da interação verbal entre enunciador e enunciatário do texto (nenhuma palavra é nossa, mas traz em si a perspectiva de outra(s) voz(es);
- o da intertextualidade, no interior do discurso.
A polifonia trata-se de umacaracterÃstica presente em certos tipos de texto, nos quais se deixam entrever muitas vozes, por oposição aos textos monofônicos, que escondem os diálogos que os constituem.Nos romances de Balzac, por exemplo, manifestam-se as vozes da aristocracia, da burguesia e da pequena burguesia. Essas vozes têm traços sociológicos/ideológicos diferentes. Os discursos autoritários são monofônicos porque abafam as vozes em conflito.
“A intertextualidadeé o processo de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-loâ€. De maneira geral, pode-se dizer que há três tipos de intertextualidade: a citação, a alusão e a estilização. A intertextualidade é um dos principais fatores de coerência de um texto na medida em que, para o processamento cognitivo (produção/recepção) de um texto recorre-se ao conhecimento prévio de outros textos.
Dialogismo e Bakhtin
O conceito de dialogismo nasce com Bakhtin (La Poétique de Dostoïevski, 1970, Barcelona: Barral Editores), que aponta para duas diferentes concepções do princÃpio dialógico: a do diálogo entre interlocutores e a do diálogo entre discursos. Para Bakhtin o texto se define como:
a) objeto significante ou de significação, isto é, o texto significa;
b) produto da criação ideológica ou de uma enunciação, com tudo o que está aà subtendido: contexto histórico, social, cultural, etc.( Em outras palavras, o texto não existe fora da sociedade, só existe nela e para ela e não pode ser reduzido à sua materialidade lingüÃstica (empirismo objetivo) ou dissolvido nos estados psÃquicos daqueles que o produzem ou o interpretam (empirismo subjetivo);
c) dialógico: já como consequência das duas caracterÃsticas anteriores o texto é, para o autor, constitutivamente dialógico; define-se pelo diálogo entre os interlocutores e pelo diálogo com outros textos;
d) único, não reproduzÃvel: os traços mencionados fazem do texto um objeto único, não reiterável ou repetÃvel.
Para Bakhtin, a diferença entre as ciências naturais e as humanas é que as primeiras são monológicas e as segundas dialógicas: nas ciências naturais procura-se conhecer o objeto e nas ciências humanas procura-se conhecer um sujeito, um produtor de textos.
“As ciências exatas são uma forma monológica do conhecimento: o intelecto contempla uma coisa e pronuncia-se sobre ela. Há um único sujeito: aquele que pratica o ato de cognição (de contemplação) e fala (pronuncia-se). Diante dele, há a coisa muda. Qualquer objeto do conhecimento ( incluindo o homem) pode ser percebido e conhecido a tÃtulo de coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser percebido e estudado a tÃtulo de coisa porque, como sujeito, não pode, permanecendo sujeito, ficar mudo; conseqüentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógicoâ€.
O sujeito da cognição procura interpretar e compreender o outro sujeito em lugar apenas de conhecer um objeto:
“A compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como a réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra.â€
Para Bakhtin a vida é dialógica por natureza: é impossÃvel pensar no homem fora das relações que o ligam ao outro (a alteridadedefine o ser humano, pois o outro é imprescindÃvel para sua concepção).
Podemos separar em Bakhtin duas noções de dialogismo:
a) Diálogo entre interlocutores: quatro aspectos de sua concepção de dialogismo entre interlocutores devem ser mencionados:
a1) - a interação entre interlocutores é o princÃpio fundador da linguagem (Bakhtin vai mais longe do que os linguistas saussurianos, pois considera não apenas que a linguagem é fundamental para a comunicação, mas que a interação dos interlocutores funda a linguagem);
a2) - o sentido do texto e a significação das palavras dependem da relação entre sujeitos, ou seja, constroem-se na produção e na interpretação dos textos;
a3) - a intersubjetividade é anterior à subjetividade, pois a relação entre os interlocutores não apenas funda a linguagem e dá sentido ao texto, como também constrói os próprios sujeitos produtores do texto;
a4) - as observações feitas podem conduzir a conclusões equivocadas sobre a concepção bakhtiniana de sujeito, considerando-a “individualista†ou “subjetivaâ€.
Na verdade Bakhtin aponta dois tipos de sociabilidade: a relação entre sujeitos (entre interlocutores que interagem) e as dos sujeitos com a sociedade.
b) Diálogo entre discursos
Como já vimos, para Bakhtin, o dialogismo é o princÃpio básico constitutivo da linguagem e a condição do sentido do discurso. Insiste no fato de que o discurso não é individual, nas duas acepções de dialogismo mencionadas: não é individual porque se constrói como um diálogo entre discursosâ€, ou seja, porque mantém relações com outros discursos. O dialogismo, tal como Bakhtin o concebe, define o texto como “um tecido de muitas vozesâ€, ou de muitos textos ou discursos, que se entrecruzam, se completam, respondem umas à s outras ou polemizam entre si no interiordo texto. Neste sentido o discurso tem sempre um caráter ideológico.
b1) - O dialogismo constitutivo da linguagem: - Para Bakhtin a linguagem é, por constituição, dialógica; e a lÃngua não é ideologicamente neutra, e sim complexa, pois, a partir do uso e dos traços dos discursos que nela se imprimem, instalam-se na lÃngua choques e contradições. Em outras palavras, para ele, no signo, confrontam-se Ãndices de valor contraditório. Assim caracterizada, a lÃngua é dialógica e complexa, pois nela se imprimem historicamente, e pelo uso, as relações dialógicas dos discursos. A linguagem, seja ela pensada como lÃngua ou como discurso é, portanto, essencialmente dialógica. Ignorar sua natureza dialógica, é o mesmo, para Bakhtin, que apagar a ligação que existe entre a linguagem e a vida.
b2) - Dialogismo e polifonia: Muitas vezes os termos dialogismo e polifonia foram usados como sinônimos nos escritos de Bakhtin ou por outros autores. Atualmente, alguns teóricos (Barros, 1997 - in Bakhtin, dialogismo e construção do sentido) separam estes dois conceitos:
“Em trabalho anterior sobre o assunto, distingui claramente dialogismo e polifonia, reservando o termo dialogismo para o princÃpio dialógico constitutivo da linguagem da linguagem e de todo discurso e empregando a palavra polifonia para caracterizar um certo tipo de texto, aquele em que o dialogismo se deixa ver, aquele em que são percebidas muitas vozes, por oposição aos textos monofônicos que escondem os diálogos que os constituem. Trocando em miúdos, pode-se dizer que o diálogo é condição da linguagem e do discurso, mas há textos polifônicos e monofônicos, conforme variem as estratégias discursivas empregadas. Nos textos polifônicos, os diálogos entre discursos mostram-se, deixam-se ver ou entrever; nos textos monofônicos eles se ocultam sob a aparência de um discurso único, de um única voz. Monofonia e polifonia são, portanto, efeitos de sentido, decorrentes de procedimentos discursivos, de discursos por definição e constituição dialógicosâ€.
Intertextualidade
A Intertextualidadeserá definida por Beaugrande e Dressler como um dos principais fatores de coerência de um texto na medida em que, para o processamento cognitivo (produção/recepção) de um texto, recorre-se ao conhecimento prévio de outros textos. A intertextualidade pode ser de formaou de conteúdo (Koch, 1996):
a) intertextualidade de forma ocorre quando o produtor de um texto repete expressões, enunciados ou trechos de outros textos, ou então o estilo de determinado autor ou de determinados tipos de discurso. Exemplo de intertextualidade de forma pode ser detectada entre a “Canção do ExÃlioâ€, de Gonçalves Dias e trechos do Hino Nacional Brasileiro e da Canção do Expedicionário:
“Do que a terra mais garrida
Teus risonhos lindos campos têm mais flores
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida em teu seio mais amoresâ€( Hino Nacional)
“Por mais terras que eu percorra
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá... (Canção do Expedicionário)
b) intertextualidade de conteúdo, pode-se dizer que é uma constante: os textos de uma mesma época, de uma mesma área de conhecimento, de uma mesma cultura etc, dialogam necessariamente uns com os outros. Essa intertextualidade pode ocorrer de maneira explÃcita ou implÃcita. No primeiro caso, o texto contém a indicação da fonte do texto primeiro, como acontece com o discurso relatado; as citações e referências no texto cientÃfico; resumo e resenha; traduções; retomadas da fala do parceiro na conversação face-a-face, etc. Já no caso da intertextualidade implÃcita não se tem indicações da fonte, de modo que o receptor deverá ter os conhecimentos necessários para recuperá-la; do contrário não será captar a significação implÃcita que o produtor pretende passar. É o caso de alguns tipos de ironia, da paródia, de certa paráfrases, etc.
Exemplos de intertextualidade explÃcita:
“ Concordamos com Charolles - 1983, quando afirma ser a coerência um
princÃpio de interpretabilidade do discursoâ€.
“João: Hoje vai chover.
Maria: Hoje vai chover? Então vamos deixar o passeio para amanhã.
Não havendo indicação da fonte do texto original, caberá ao receptor, através de seu conhecimento de mundo, não só descobri-la como detectar a intenção do produtor do texto ao retomar o que foi dito por outrem. As matérias jornalÃsticas de um mesmo dia ou de uma mesma semana - quer do mesmo jornal, quer de jornais diferentes, quer, ainda, de revistas semanais -, noticiários de rádio e TV - normalmente “dialogam†entre si, ao tratarem de um fato em destaque (intertextualidade de conteúdo).
A intertextualidade se estabelece também quando nos “apropriamos†de provérbios e ditos populares em nossas conversas ou em nossos textos escritos, endossando-os ou revertendo a sua forma e/ou o seu sentido. Romano de Sant’Anna distingue intertextualidade das semelhanças da intertextualidade das diferenças. No primeiro caso, o das semelhanças, há uma adesão ao que é dito no texto original, no segundo caso, o das diferenças, representa-se o que foi dito para propor uma leitura diferente e/ou contrária. A repetição pura e simples, bem como a paráfrase pertencem ao primeiro tipo; já a paródia, a ironia, a concessão ou concordância parcial (em que se “acolhe†os argumentos contrários para, em seguida apresentar argumentos decisivos capazes de destruÃ-los) são exemplos do segundo tipo.
Exemplos:
“Minha terra tem macieiras da Califórnia onde cantam gaturanos de Veneza†(Murilo Mendes - Canção do ExÃlio)
“É verdade que o presidenciável X tem um discurso interessante, como afirmam muitos analistas polÃticos. No entanto, se examinarmos mais a fundo seus pronunciamentos, verificaremos que ele não tem um projeto consistente de governoâ€
O reconhecimento do texto-fonte e dos motivos de sua reapresentação, no caso da intertextualidade implÃcita, é, como se vê, de grande importância para a construção do sentido de um texto.
Fiorin (1994)entende que há três processos principais de intertextualidade:
a) Citação: utilizada para confirmar ou alterar o sentido do texto citado:
- “Segundo, Fiorin (1990) “ à essa citação de um texto por outro, a esse diálogo entre textos dá-se o nome de intertextualidadeâ€.
- “Não concordo com Marx quando ele diz que “ a religião é o ópio do povoâ€.
b) Alusão: não são citadas as palavras do outro texto, mas reproduzem-se construções sintáticas em que certas figuras são substituÃdas por outras.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida. (Gonçalves Dias, Canção do exÃlio)
Nossas flores são mais bonitas
Nossas frutas mais gostosas
Mas custam cem mil réis a dúzia. (Murilo Mendes, Canção do exÃlio)
c) Estilização: é a reprodução do conjunto dos procedimentos do “discurso de outremâ€, isto é, do estilo do outrem. Segundo Fiorin (1994) “estilos devem ser entendidos aqui como o conjunto das recorrências formais tanto no plano da expressão quanto no plano do conteúdo que produzem um efeito de sentido de individualizaçãoâ€. Na “carta pras Icamiabasâ€, do livro MacunaÃma, Mário de Andrade faz uma estilização com função polêmica:
Senhoras:
Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura desta missiva. Cumpre-nos, iniciar estas linhas de saudade e muito amor com desagradável nova. È bem verdade que na boa cidade de São Paulo – a maior do universo no dizer de seus prolixos habitantes – não sois conhecidas por “icamiabasâ€, voz espúria, senão que pelo apelativo de Amazonas; e de vós se afirma cavalgardes belà geros ginetes e virdes da Hélade clássica [...}
Prof. Gesiane Monteiro Branco Folkis
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