Don't mess with (my) black hair. I(t) will bite you.
Filosofia

Don't mess with (my) black hair. I(t) will bite you.


Querida Sofia,
Passei algum tempo afastada da leitura de blogs vizinhos. Esta semana passei uma madrugada a ler tudo o que perdi no blog da Kitty Fane. Houve alguns (muitos) posts que me foram directos à alma e este do qual venho falar-te veio-me directo ao cabelo. A Kitty Fane viu feridas na cabeça de uma aluna de raça negra por esta ter extensões. O post não tinha nada de mal. Graças a Deus, usei extensões (vulgo, tissagem) durante anos e nunca tive feridas na cabeça. Mas já tive outras coisas, e sei o quanto estas coisas são para sofrer a sério. O que me deixou piurça foram alguns dos comentários que vi referentes ao post em questão.
*
"E o dinheiro que gastamos não fazes ideia. Pelo menos quem quer ter um cabelo dito normal."
Hmmm... hmmm... hmmm....
*
“Sofrem porque querem, certo?"
Hmmm... hmmm... hmmm....
*
Ele há coisas nesta vida... bref!
Vamos por partes. Eu, Elite Maria, sou o feliz fruto de um pai negro e de uma mãe mestiça. Tenho cabelo crespo. Carapinha. Um farta carapinha juba de leão.
Verdade seja dita, não tenho o cabelo mais difícil de manusear no mundo.... é crespo mas há mais crespo na terra.
A senhora minha mãe nasceu com cabelo liso, nada a ver com a textura do meu. Quando era pequena, eu e a minha irmã muito sofríamos por causa disso. A minha mãe nunca teve carapinha e tinha de aturar as nossas. A solução dela era fazer-nos tranças bonitas com laços coloridos e renovava todas as semanas. Que bem que me lembro desses domingos à tarde. Era pente e quilos de creme (o Pink) e água para conseguir desembaraçar o cabelo. Não havia aquela coisa fantástica de pegar numa escova com dentes e escovar o cabelo. Não, era com pente de "garfo largo" mesmo, pedacinho por pedacinho e muito choro à mistura. Aliás, eu já sabia. Domingo, era dia de tortura.
*
O "Mãe, 'taaaa doer" não servia de nada. Não tínhamos dinheiro na época e a minha mãe gostava de nos ter impecáveis para ir para a escola. Depois de duas horas (ou mais), lá tinha eu a juba de leão domada com tranças e lacinhos. Recordo-me perfeitamente (até hoje é o mesmo), a minha mãe dava-me o meu cabelo que tinha caído, que ficava no pente no final para eu deitar fora. Eram sempre uma bola enorme. Todas as semanas.
Um dia, quando tinha cinco anos de idade, fui de viagem escolar durante uma semana e a minha mãe levou-me à escola penteada. Ela disse que enquanto eu estava fora, sonhou que eu tinha desmanchado as tranças e que lhe chegava a casa com os cabelos em pé. Dito e feito, foi assim que voltei de viagem. Tranças desfeitas, cabelo em pé porque a professora teve medo de me arrancar o cabelo se me tivesse ajudado a refazê-las.
Um dia, depois de anos a fio a pentear a carapinha das filhas e a ver o nosso cabelo cair em grandes quantidades, a minha mãe optou por desfrisar-nos o cabelo às duas. Acho que eu tinha sete anos. Lembro-me que aquilo demorou imenso tempo, ardia, mas o resultado lá estava. Cabelo mais liso, fácil de pentear e quando a minha mãe fazia-me as tranças semanais, o cabelo já não caía em resmas. E a partir desse momento na minha vida, nunca mais deixei de desfrisar. Regra geral, todos os três meses, lá estou eu de novo com produtos químicos para esticar aqui «la chose».
No entanto, o meu cabelo NAO se tornou NORMAL depois de eu ter começado a desfrisar. O meu cabelo nunca foi ANORMAL. Eu tinha cabelo de uma mulher mestiça e até hoje o tenho. Desfrisado ou não. Ter cabelo liso não é sinal de normalidade. Como ter cabelo encaracolado não é sinal de anormalidade. Ter o cabelo ressequido, partido, queimado é que é anormal.
Essa de "sofremos porque queremos" é uma treta. Se eu pudesse gastar menos dinheiro e tempo de "bunda sentada no salão", acredita, não faria nada disso. Mas desfrisar o cabelo facilita-me a vida. Ter chorado várias vezes num cabeleireiro não é dos melhores feitos da minha vida. Mas acontece-me pelo menos uma vez por ano. E dói, que porra.
Sobre o uso de extensões, tissagens e tranças postiças, o tema já é outro. Ou quase. Ter o cabelo comprido, numa mulher, é por vezes sentido como um atributo que dá uma aparência fisicamente mais sedutora. Não há ninguém que me diga que uma Italiana de cabelo preto comprido não seduz imenso. Cabelos crespos, pela sua natureza e por crescerem em círculo, não crescem tão rapidamente quanto um cabelo liso. Uma mulher negra tem menos oportunidades de ver o seu cabelo crescer até o final das costas que uma Indiana. Ciência, pura ciência.
Daí por vezes acrescentar cabelo natural ou artificial, comprado num templo da Índia ou wherever the heck levanta o ego de uma mulher. E outra coisa, fazendo tranças por dois ou três meses, o cabelo pode crescer sem ter de sofrer com o pente e a possibilidade de cair com frequência. Idem com tissagens, que são feitas com tranças corridas. O cabelo natural da mulher fica "protegido" e apenas o que é visível (e em maior parte, falso) é que é penteado no quotidiano, deixando o verdadeiro cabelo descansar de pentes e companhia.
Venho com isto dizer-te que por vezes, pode ser vaidade. Mas que no final de contas, ajuda-nos a sério, ajuda. Muitas modelos, actrizes e cantoras famosas usam extensões e perucas e é para não sofrerem com excessos de secadores e ferros. Porque como disse acima, o cabelo queimado é cortado ou parte. E não cresce à velocidade luz. Dai a Tyra Banks, quando exibiu o cabelo natural, ter dito que não iria dizer não para sempre às extensões porque o cabelo dela estava a sofrer imenso por andar sempre com transformações quotidianas para o seu programa.
Não sei se o filme saiu no Brasil ou em Portugal, nem em França tenho essa informação, mas enquanto estava nos Estados Unidos vi o filme Good Hair. E explica esses detalhes todos ao pormenor e com a sua dose de humor.
E porque nem tudo é mau, há um comentário que me fez pensar mais no assunto, pois já tinha ouvido algures o que pensava a Oprah mas não tinha ainda tido a prova.
"Lembro-me de uma daquelas intervenções financeiras da Oprah, aqui há uns três anos, em famílias em rico de bancarrota. A consultora que assistia uma família de cor (eram três famílias) cortou gastos de maneira implacável, nomeadamente nas idas ao cabeleireiro. A Oprah insurgiu-se e disse que ela não podia perceber como essa era uma coisa fundamental para uma mulher de cor"
A verdade é que enquanto estudante aqui, nem sempre tive dinheiro para ir desfrisar o cabelo. Desfrisar a carapinha custa entre 50 e 200€ em Paris. Um balúrdio mais fácil de se assumir trimestralmente quando se trabalha. Então há outras soluções, que eu tenho a sorte de ter: as amigas que têm mão e jeito para cuidar do nosso cabelo e que fazem-no o favor gratuitamente ou por muito menos dinheiro. Tenho uma amiga que sabe fazer tudo o que é possível e imaginável com cabelo, que seja liso, encaracolado ou crespo. E ela é que é responsável pelas minhas melhores tissagens este ultimo ano. Mas pouco importa o nível de vida das mulheres negras e/ou mestiças, sei que gostam de sair à rua bem apresentadas, que seja de cabelo natural, tranças ou com peruca. E que muitas aprendem a cuidar dos seus próprios cabelos ou têm uma irmã ou uma prima que cuide do assunto. Ou então, tem de gastar o seu dinheiro no cabeleireiro. Não é luxo. Chamamos a isso necessidade.
Lembro-me que quando a minha irmã e eu viemos morar para a Europa, o nosso pai aceitava pagar tudo, casa, escola, material escolar, luz, comida, mas disse "para os vossos cabelos, peçam dinheiro à vossa mãe".
Decidi em Agosto deixar de usar cabelo que não fosse meu. Tenho sofrido (aka cabelo a cair por ser manuseado todos os dias) com essa decisão mas por enquanto, quero usar o meu cabelo como ele é. Alguém que conhece alguém que eu conheço disse que viu-me na rua e eu tenho um "crazy hair". Ainda não vi serpentes e moedas por lá a passear, mas na volta, estamos quase lá. Podem dar-lhe o nome que quiserem. Mas amo o meu cabelo exactamente como ele é hoje. E sei que pela sua natureza, assim como a minha pele oleosa e acneica, é onde eu vou ter de mais investir até o final dos meus dias. E como diz um famoso slogan francês...

Je fais ce que je veux avec mes cheveux*

Arquivo mais que pessoal: eu em Lisboa, Maio 2008, a minha amiga Patucha a desfrisar-me o cabelo quimicamente.

Arquivo mais que pessoal: a minha amiga Olga a cuidar e desfrisar o meu cabelo.
Nesse dia, fiquei com uma mascára de ovo e azeite durante 12 horas no cabelo para surtir esse efeito brilhante.

Arquivo mais que pessoal. Daqueles arquivos em foto que nem a namorado se mostra. Mas aqui estou eu a dar um grande salto para ti, Sofia. Antes de se colocar extensões, é necessário fazer uma longa trança corrida pelo cabelo todo (ou uma sucessão de tranças diferentes) e em seguida cose-se as filas de cabelo em extensão. Nos primeiros dias é bastante apertado. Ter a cabeça pousada numa almofada pode ser uma tortura.

Eu em Agosto 2006. Extensões até o r**inho. Essas operações (desfrisar + colocar extensões) demoram entre três a seis horas.Eu nos dias de hoje. Meu cabelo apenas. E já é muito.


*Eu faço o que quero com o meu cabelo
Obrigada à Mikas pelas correcções ao texto antes da edição.



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