Iba Mendes: Entre o Jeca Tatu e o Brasil moderno
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Iba Mendes: Entre o Jeca Tatu e o Brasil moderno


Iba Mendes: Entre o Jeca Tatu e o Brasil moderno: “A preocupação do cronista do jornal O Tempo , de Concórdia, em meados do século XX, conforme se observa no fragmento a seguir, reflete ...





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“A preocupação do cronista do jornal O Tempo, de Concórdia, em meados do século XX, conforme se observa no fragmento a seguir, reflete as discussões relacionadas ao estatuto étnico do brasileiro, que se faziam no país desde o final do século XIX.
Há selvagens em Concórdia.

Talvês os presados leitores se espantem com o título desta croniqueta sobre nossa cidade, na verdade é que perambulam em nosso meio, ainda alguns aborígines. Não são eles da tribu dos xavantes e nem vindos do interior do Amazonas mas de “tribu” local o que, infelismente, não logrou a ação benefica dos missionarios e ficaram, portanto, privados da catequeze. A esta altura estarão os civilizados anciosos por conhecer tais ‘selvicolas’, não resta dúvida. Basta apenas dar uma chegadinha á nossa praça da Bandeira, que, aliás, não é das piores e observar alguns rapazolas marmanjões, sempre os mesmos, que não tem nenhum respeito para com esse logradouro público. Maltratam as árvores escrevendo bobagens em seu tronco, trepam-nas quais monos, caçam os inocentes passarinhos que alegram a praça, atravessam por cima dos canteiros de tanta preguiça que possuem em dar a volta pelos corredores, fazem competições de bodoques tendo como alvo as rosas que enfeitam e dão encanto á dita praça. Ha uma lei, se não engano, que prevê certa multa ou punição para esses selvagens. É preciso, caso exista, po-la em prática e catequizar êsses marmanjos desprovidos de amor ás coisas públicas e alheios á civilização. Não sendo assim, melhor será converter a Praça da Bandeira em chácara e plantar-se favas e alho.
As contraposições entre moderno e arcaico, civilizado e selvagem, sertanejo e alheio à civilização estiveram no bojo dos inúmeros debates, sejam os promovidos pela imprensa, sejam os feitos pelas autoridades e, especialmente, pela intelectualidade.
O fato de “alguns rapazolas marmanjões” não demonstrarem amor às coisas públicas evidenciava que não estariam ajudando a construir a nação almejada, nem contribuindo com a unidade de um povo ordeiro, trabalhador e civilizado. O comportamento dos indivíduos “da tribu       local” seria mais próprio dos “selvagens”, mas não condizente com as pessoas necessárias para a construção do Brasil moderno . Tal juízo a respeito das pessoas que não buscassem uma ocupação no trabalho reflete o tipo de representação construída em relação aos grupos que ocupavam o Oeste catarinense antes do processo de colonização.
Quando se refere ao estatuto étnico do brasileiro, reporta-se às representações construídas sobre a população, de modo particular aos grupos indígenas, aos caboclos, aos negros, bem como aos portugueses vistos como de condição social inferior. A todos esses grupos se atribuíam qualificativos considerados questionáveis para a tarefa de construir a nação brasileira. Tais grupos eram, geralmente, colocados em contraposição aos brancos imigrantes, caracterizados com imagens positivadas. Essa bipolaridade é observada pela atribuição de qualificativos éticos e morais, psicológicos, intelectuais ou da capacidade de trabalho.
Na passagem do século XIX para o XX, prevaleciam nas ciências sociais, representações negativas sobre a etnia, seja em relação aos brasileiros, aos mestiços, assim como aos caboclos e aos indígenas.
Referindo-se às representações construídas sobre esses grupos, Roberto Cardoso de Oliveira enfatiza que a etnia não deve ser confundida com grupo étnico, mas sim, vista como:
Um ‘classificador’ que opera no interior do sistema interétnico e ao nível ideológico, como produto de representações coletivas polarizadas por grupos sociais em oposição latente ou manifesta. Esses grupos são étnicos na medida em que se definem ou se identificam valendo-se de simbologias culturais, ‘raciais’ ou religiosas.

No entender de parte da intelectualidade, as razões para justificar a incômoda posição do Brasil no cenário internacional, naquele momento, ligavam-se ao estatuto étnico da sua população. Essa intelectualidade sentia-se não só com a missão de sugerir como os governantes deveriam encarar tal problema como também criar as condições para construir uma nação. Enfatizava-se que a mestiçagem e a presença de “raças inferiores”, na constituição da sociedade brasileira, seriam os empecilhos e a justificativa dos problemas enfrentados pelo país, tanto internamente quanto para ocupar um melhor lugar no cenário mundial.
Destaque-se que as explicações relacionadas à hierarquia racial, propagadas no transcurso da primeira metade do século XX, procuravam se legitimar tendo como embasamento científico o Positivismo, o Determinismo, o Evolucionismo e o Darwinismo Social.
Destarte, a defesa de determinado ponto de vista sobre a questão social se transformava numa convicção científica e não, necessariamente, uma posição de má fé de quem o defendia. Nessa época, a ciência propagava a idéia de que ela era o caminho necessário e seguro para a solução dos problemas. No caso da hierarquia racial, o discurso científico fornecia um rol de argumentos e explicações para justificá-la.
Nesse contexto, no início do século XX, como enfatiza De Luca,
A prática de cindir a humanidade em grupos, aos quais eram atribuídos valores biológicos, psicológicos , morais e/ou culturais intrinsecamente diferentes continuava desfrutando do status de verdade científica que poucos ousavam contestar. [...] Na sua versão mais ortodoxa, a inferioridade étnica condenava a maioria dos habitantes ao status de subcidadão, deixando pouco espaço para o exercício dos direitos políticos. Postulava-se a necessidade de elevar o seu patrimônio étnico, o que deveria ser feito aliando a imigração selecionada a uma severa legislação eugênica encarregada de coibir os cruzamentos de portadores de deficiências físicas, psicológicas e ou morais e de incentivar a reprodução dos bem-dotados.
No final do século XIX e nas décadas iniciais do XX, diferentes situações fomentaram discussões relacionadas à idéia de “Brasil moderno” e de “Brasil nação”. Destacam-se, especialmente, a abolição da escravatura e o fim da monarquia, o crescimento demográfico e da urbanização, o impulso da industrialização, o contexto que envolveu a comemoração do centenário da independência, o afloramento de movimentos políticos como o Tenentismo, a Coluna Prestes e a Revolução de 1930.
Na região de abrangência desta pesquisa, pode-se citar a construção da ferrovia São Paulo-Rio Grande, a guerra do Contestado, as disputas de divisas e a colonização, entre outros. Direta ou indiretamente essas situações levaram a refletir sobre “quem eram os brasileiros”, de “que forma” e “quem” poderia dar uma melhor contribuição na tarefa de construir a nação.
Seriam os indígenas? os portugueses? os brasileiros? os afros? os imigrantes? Entre os que discutiam tais questões não havia consenso. Em diversas situações, os indígenas apareciam como imprescindíveis ao projeto nacional. Num dos documentos do Ministério da Agricultura, por exemplo, que informava ao Governo catarinense a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e de localização de trabalhadores nacionais, convocava-se a todos quantos, com o governo de Santa Catarina, pudessem trabalhar no intento de conquistar as populações e o território. Referindo-se aos indígenas, o documento coloca que “eram trabalhadores consideráveis, planeados desde 1823, por José Bonifácio” e que “para a organização final de nossa nacionalidade não poderia haver exclusão de nenhum dos elementos constitutivos da população brasileira”.
O SPI foi criado em 1910 e chefiado pelo marechal Rondon, o qual defendia os direitos dos povos indígenas em relação à posse da terra e que os mesmos poderiam viver de acordo com os próprios costumes. Apesar disso, o surgimento desse serviço permitiu aos brancos implantar um processo de acomodamento dos povos indígenas, no qual prevaleceu a idéia de que deveriam ser protegidos e tutelados pelo Estado, evidenciando o entendimento de que eram pessoas que não possuíam autonomia e capacidade de governo.
Entre os autores que pensavam o Brasil, encontravam-se reflexões sobre as “três raças tristes”, explicava-se a mestiçagem e imaginava-se a democracia racial. Também se procurava explicar as desigualdades regionais, raciais e outras tantas, na natureza e na história passada; por isso, propunha-se pensar o Brasil do futuro. Havia, ainda, inquietações com o fato de que a maior nação católica do mundo flutuava entre a religiosidade afro e a indígena.
O contexto da emergência dessas discussões foi um período em que, como afirmou Ianni, “o Brasil tentava entrar no ritmo da história”. Se por um lado, havia os defensores da utilização dos indígenas e outros grupos nacionais no projeto de construção do Brasil moderno, por outro, também se fazia a defesa no sentido de favorecer a imigração, seja para o espaço agrário ou para o urbano, no intuito de europeizar e branquear a população, para acelerar o esquecimento dos séculos de escravismo.
Os defensores do branqueamento colocavam essa alternativa como uma espécie de solução miraculosa na tarefa de construir a nação, sendo que, com o tempo, superar-se-ia a mestiçagem produzida no país. “Só teríamos a ganhar com a larga ‘transfusão de sangue rico e puro’”.
Diante do dilema, sobre o indesejado passado brasileiro em relação a seu quadro humano, uma das formas sugeridas para se livrar dele, seria a sua negação e, para suprir essa lacuna, propunha-se construir uma idéia centrada no Brasil do futuro, tendo em vista que,
[o passado] estava longe de fornecer uma visão reconfortante pois, além de não poder evocar um tempo imemorial, povoado de heróis e glórias, era responsabilizado pelas chagas do presente, tomadas como ingrata herança. [...] a história era reticente e insistia nas mazelas e desacertos, deixando poucas possibilidades para uma celebração do passado capaz de despertar a comunhão imediata com as nossas tradições.
Essa situação é observada nos diversos relatos sobre o Oeste catarinense, como o produzido por D’Eça, por ocasião da viagem do Governador Adolfo Konder, em 1929. Referindo-se a uma das várias execuções do Hino Nacional, que havia registrado, o autor deixa evidente essa idéia de Brasil do presente e do potencial futuro que possuía. Ao comentar seus próprios sentimentos e deixando fluir sua veia poética, salientou que se tratava de “um hino cheio de rumores quentes e de ressonâncias verdes, como uma floresta”. Através dele, “escutou a palpitação extenuante da Pátria, todo um Brasil germinado e forte, cheirando a húmus e a seiva, envolto nos apitos brancos das usinas e nos silvos fumarentos das locomotivas”.
No entanto, a tarefa de esquecer o passado e, ao mesmo tempo, inserir-se na modernidade, constituía-se num desafio de difícil transposição. Como pensar a construção do futuro sem antes entender a trajetória de formação da nação? Para transformá-la, urgia primeiro compreendê-la e explicá-la. Assim, muitas discussões centravam-se, conforme destaca Ianni, em entender quais eram as forças sociais da nação, os seus valores culturais, as tradições, os heróis, os santos, os monumentos entre outros. Buscava-se também compreender os motivos, o significado das diversidades regionais, étnicas ou raciais e culturais, sociais, econômicas e políticas.
Em relação às populações do Oeste catarinense, os relatos da época, de modo geral, apresentam-nas numa perspectiva semelhante às populações do interior do Brasil. Referindo-se às visitas realizadas a fazendeiros, na região, pela expedição de 1929, destaca Costa que, nalgumas delas, “viram senhoras e senhoritas, esposas e filhas de fazendeiros, revelando fina educação, frutos lídimos da civilização mais alta e, como eram raras, causou espanto.
Como se observa, a civilização seria exceção. O Oeste de Santa Catarina foi, por muitos anos, sinônimo de “terra sem lei”, sem dono e “sertão bruto” e constituiu-se na última fronteira do Estado a entrar no modelo colonizador e civilizador. A viagem do Governador Konder foi simbólica, pois representava a autoridade, a força e a lei que abria o caminho para a expansão da civilização.
O início do século XX, num contexto de efervescência de percepções sobre o Brasil, de diferentes formas, difundiu-se a idéia da necessidade de “vencer o sertão”, “transformar sua gente” e de “modernizar o Jeca Tatu”. Na mesma perspectiva, além da difusão de uma leitura positiva da mestiçagem, emergiram interpretações apoiadas em princípios higiênicos e eugênicos.
Faziam-se, também interpretações que davam ênfase à necessidade de se evidenciar questões que levassem a uma valorização do que fosse brasileiro, no intuito de mostrar outra face do caráter nacional. Nessa perspectiva, também as questões territoriais, defendidas pelo Barão do Rio Branco, contribuíram para fomentar as discussões sobre a unidade da nação.
No bojo dessas discussões, ganharam evidência entidades, como a Sociedade Nacional de Agricultura e a Sociedade Central de Imigração. Esta defendia a criação de uma forte classe média rural a partir dos imigrantes europeus, pois entendia que a grande propriedade era irremediavelmente ineficiente e atrasada. Mas, considerando que a elite agrária, de certa forma, era controladora do governo, defendia que a pequena propriedade se instalasse em áreas onde não concorresse ou não representasse perigo ao latifúndio, mas viesse beneficiá-lo.
Por sua vez, a Sociedade Nacional de Agricultura criada em 1897, em meio ao turbulento período de consolidação do regime republicano, constituiu-se não só numa das primeiras modalidades de institucionalização autônoma dos interesses agrários, mas também na entidade organizadora dos segmentos secundários da classe proprietária. Esses se ligavam às atividades agrárias voltadas ao mercado interno. Seus esforços, teóricos e práticos, voltaram-se para o que considerava o aprimoramento da agricultura brasileira. Para tanto, fomentou a distribuição de sementes e mudas das espécies que acreditava necessário divulgar, definindo, com isso, os setores a serem privilegiados, como o da produção de milho, algodão, cana, arroz e forragens. Buscava estimular as “contribuições científicas”, com destaque para os estudos técnicos sobre certos cultivos ou experimentos agrícolas, cuja origem se reportava a experimentos estrangeiros, tidos como exemplares da produtividade e eficiência almejados. Com tudo isso entendia estar defendendo a construção do progresso pela idealização do “agricultor moderno brasileiro”.
Em vários ofícios enviados pela Diretoria de Serviço de Propaganda e Expansão Econômica do Brasil no Estrangeiro, especialmente de Roma e Paris, ao governo de Santa Catarina, reporta-se à necessidade do governo brasileiro estar atento às novidades científicas ligadas à agricultura. Idealiza-se a experiência francesa e comunica-se o interesse de agricultores franceses em desenvolver o cultivo de videiras no Brasil, além disso, uma Associação de Agricultura da França propunha-se a dirigir no Brasil “estudos e práticas das ciências agrícolas”, já no início do século XX.
A propagação da idéia do associativismo rural em Santa Catarina pode ser vista como uma tentativa de difundir a idéia de modernização agrícola. Inúmeras associações formaram-se e, dessas, surgiu a Federação das Associações Rurais de Santa Catarina, a qual exerceu significativa influência nas décadas de 1940-50. Tais Associações promoviam a distribuição de sementes, ovos de galinhas e animais de raça, implementos agrícolas, como trilhadeiras e arados, entre outros.
Ao longo das primeiras décadas do século XX, tanto as idéias de modernização, quanto as de unificação e fortalecimento da nacionalidade fomentaram diferentes discussões. Nessa perspectiva, cabe destacar o entendimento de Ianni acerca da preocupação das ciências sociais em compreender as condições e possibilidades do Brasil moderno. O autor chama a atenção ao fato de que nessa discussão havia algo de caricatura, resultante da imitação de outras realidades ou configurações históricas e tornava-se ainda mais grotesca porque superpunha conceitos e temas à realidades nacionais múltiplas, sejam elas referentes ao passado ou presente, nas quais se mesclavam os ciclos e as épocas da história brasileira, como em um insólito caleidoscópio de realidades e imitações.
Em relação ao Oeste catarinense, fica evidente, nessa pesquisa, que no início do século XX, via-se a região como um “grande vazio demográfico”, que “necessitava de efetiva ocupação” e de “braços para o trabalho”. Essa percepção também pode ser constatada nos relatos de viajantes que, em geral, reproduziam a visão oficial.
O depoimento de Piccoli sobre a situação das terras na região, mostra que, salvo “algumas propriedades legítimas”, elas eram “devolutas”, mas “intensamente povoadas”, pelos “caboclos de folha corrida pouco recomendável”, ocupavam-na como “posseiros e intrusos”. Salienta, ainda, que essa população vivia abandonada, sem governo, na mais absoluta ignorância, sem assistência religiosa e na ausência de autoridades reconhecidas fazia prevalecer a lei do mais forte.
Piccoli fala em terras que já se encontravam “intensamente povoadas” e, logo em seguida, refere-se ao “primeiro habitante”, José Antônio Leitão. A postura de ignorar os grupos populacionais já existentes na região, prevaleceu durante o contexto da colonização. Mas era nesse sentido que, oficialmente, colocava-se a “ocupação efetiva do território” e a “conquista do sertão” como forma de tornar plena a construção do Brasil, pois, além de dar unidade territorial, tal conquista era considerada imprescindível na construção da própria nação. Para que o Brasil alcançasse a modernidade, necessitava, também, ocupar e civilizar esse sertão.
Mesmo em interpretações onde o sertanejo era visto como legítimo brasileiro, nem sempre era apresentado como o elemento ideal para a chamada “efetiva ocupação do território” ou para dar suporte à propalada construção da nação.

Não quer dizer que o sertanejo seja literalmente um Jeca. Porém, quem viaja e quem vê pelo sertão o fatalismo sertanejo, a limitação de sua agricultura, a instintiva desconfiança pela civilização, a sua habitual indolência [...] a sua palestra, a sua ignorância política, enfim, os remédios populares, a ingênua crendice dos curandeiros e das meizinhas verá a imensa verdade das páginas vivas de Urupês.
Em relação à “falta de braços para o trabalho” ou da existência de “grandes vazios demográficos”, no entender de Ramos, dizia menos respeito ao número concreto de habitantes do que a um conjunto de qualificações com que se definia a figura ideal do trabalhador livre e das quais os trabalhadores nacionais pareciam distantes. Acrescenta que o eixo dessas qualificações negativas seria a ausência, por parte do trabalhador nacional, dos hábitos culturais enfeixados no termo “civilização”, termo que se identificava à existência de uma disciplina para o trabalho, à posse de técnicas de produção, à higiene na organização da casa e da produção, além do respeito às leis.
Tal entendimento gerou discussões a respeito dos elementos que seriam desejáveis e os considerados indesejáveis na construção do projeto nacional. Essas categorias, segundo Ramos, foram mobilizadas tanto por intelectuais e políticos brasileiros, quanto pelos próprios imigrantes, nos processos de luta simbólica, que envolveu a imigração.
Situação semelhante também podia ser observada no contexto da colonização do Oeste catarinense. Referindo-se ao avanço desse processo, em 1920, o Vice Governador Hercílio Pedro da Luz evidenciava sua percepção a respeito disso, afirmando que as autoridades estaduais deveriam estar atentas para não aceitar o ingresso de "máos elementos” impedindo que os “indesejáveis” entrassem nas terras catarinenses, pois não se pretendia “gente que fo mentasse revoltas apoiadas em reivindicações sociais”, já que, aqui, “careciam de justificativa”. Acrescenta que as preocupações do governo estavam voltadas para a busca da “cooperação de trabalhadores ordeiros, para que mais fácil se tornasse a exploração do nosso solo e desbravamento do nosso sertão”.
No relato produzido por Othon D’Eça por ocasião da viagem do Governador Konder, em 1929, nota-se também uma visão poética e positiva da região e da natureza, “lugar onde as tristezas se espalham, adelgaçam-se e desaparecem, onde se tem a ilusão do paraíso e das delícias”, ou ainda, quando se reporta aos novos municípios, dizendo: “verdade das verdades, Cruzeiro e Chapecó têm sido um veio rico de surpresas agradáveis”. No entanto, essa visão se refere mais aos espaços colonizados por migrantes e menos por aqueles ocupados pelos caboclos e povos indígenas. Descreveu uma situação em que o Governador recebera um grupo de índios que protestava em relação às terras que lhe haviam sido concedidas, mas que foram ve ndidas a posseiros. O autor assim se refere ao grupo de indígenas:
Era um grupo de homens maltrapilhos, de cabelos duros e unhas crescidas, algumas mulheres com fios de contas sujas no pescoço. [...] nem todos esses bugres, de resto falam o português. [...] É... é... barbaridade! Os brasileiro qué extraviá nós a estanho. [...] Duzentos índios morrendo de miséria em mais de cem milhões de metros quadrados de terras opulentas e ferazes! [...] Fui visitar o acampamento da “delegação”. – Pedaços de couro sobre duas forquilhas. E embaixo desse alpendre, um foguinho assando uma cabeça de boi, que pingava sangue e gordura. Em torno, alguns cestos vazios, cuias para o amargo e bombinhas de taquara. Pobre Alencar! Como são esses bugres diferentes dos teus Peris e das tuas Iracemas!
O termo “bugre” foi largamente utilizado pelos colonizadores europeus para designar, de forma pejorativa, os diversos grupos indígenas no Brasil. Os bugres eram considerados incultos, rudes, violentos e incivilizados, assim como o eram os caboclos. Destaque-se que tais representações étnicas ganharam espaço com a expansão da colonização no Oeste de Santa Catarina.
Com estilo literário menos poético que D’Eça, Artur Ferreira da Costa, chefe da Polícia de Santa Catarina, no seu relato acerca da mesma expedição, também evidencia o ponto de vista oficial, em referência ao que via nos locais por onde passava. Seu texto é perpassado de inúmeras situações que apresentam a população nativa como inadequada para a construção do Brasil idealizado por autoridades ou por intelectuais. Isso se observa seja quando se refere diretamente a ela ou quando a compara com os colonizadores que já residiam na região.
Do que existia antes da chegada dos colonizadores, só a floresta foi merecedora de elogios. “A floresta é maravilhosa”. No entanto, acrescenta Costa, nessa região de floresta “selvática e grandiosa”, o homem se encontrava abandonado, por estar “longe dos recursos da civilização”, para os quais não lhe é possível apelar. Além disso, para o autor, a região se constituía “num largo recurso de impunidade para criminosos, malfeitores e bandidos”, considerando que a mesma era vista como um vasto deserto e paraíso da criminalidade.
Por outro lado, em várias situações, busca dar ênfase à idéia de Brasil moderno, como sinônimo de colonização, de civilização e progresso; diferente, portanto, do mundo do “bugre” com o qual a expedição teria se deparado. Acrescenta, ainda, que na margem catarinense, nos últimos anos, teriam surgido “núcleos coloniais muito apreciáveis, nos quais se podiam constatar traços fortes de civilização, pela organização do trabalho, sistematização das energias e ordem admirável”. Considerava que, sendo essas terras ricas e ocupadas por gente idônea, floresceria um importante núcleo de cultura e de riqueza humanas, até porque já haviam sido construídos, hotéis, clubes, salões de baile, iluminação elétrica e boas casas.
Afirmava, ainda, nessa perspectiva, que na região havia a necessidade de construção de estradas e pontes, as quais teriam um significado econômico e estratégico, assim como obras de saneamento, de viação, de urbanismo, entre elas a escola pública, as agências postais e as estações telegráficas, pois se constituiriam nos meios de contato com a civilização.
De certa maneira, nesses relatos, as representações do homem branco colonizador, o colocam como se fosse uma espécie de solução miraculosa para o futuro da região. Isso fica evidente quando a colonização branca é, normalmente, relacionada com o crescimento econômico e com o progresso e, por outro lado, o homem do sertão é, na maioria das vezes, descrito por um conjunto de qualidades “pouco recomendáveis”. Assim, fazia-se a exaltação das belezas naturais e das potencialidades da terra, mas para a sua efetiva conquista, idealizava-se e se propunha que o colonizador fosse branco, especialmente o descendente de alemães e italianos, cuja presença já era percebida. Pode-se inferir que, também no Oeste catarinense, “Peris”, “Iracemas” ou o “Jeca” do Urupês seriam incapazes de evolução, impenetráveis ao progresso e arredios à civilização. Porém, da mesma forma como ocorriam nas discussões nacionais, na região não havia um discurso único a respeito do elemento ideal para a tarefa de “ocupação do espaço”.
Essas representações foram relacionadas às populações que já viviam na região, no contexto da colonização. O que se salienta, nesse sentido, é o fato delas terem sido preteridas no processo de colonização do Oeste catarinense. Tal situação ficou evidenciada, de forma emblemática, no episódio da guerra do Contestado, visto que, ao mesmo tempo em que as autoridades consideravam necessária a “ocupação efetiva da região”, também foram responsáveis para que o conflito tomasse aquelas proporções e, nele, morressem tantos “sertanejos”.
O fato contribuiu para reforçar a idéia de que o migrante branco, especialmente o ítalo, o teuto e o polonês, fossem vistos como elemento civilizador desse sertão, pela visão de trabalho e de futuro, por ser considerado progressista e demonstrar capacidade de transformar a natureza. Por isso, a derrubada da mata, a industrialização e venda da madeira, a construção de edifícios públicos, como escolas, igrejas e clubes, o cultivo e produção de alimentos para o mercado, entre outros, e o potencial que isso tinha para se transformar em riqueza, constituíam-se em sinais de superação do “jeca tatu”.
Esses sinais eram, geralmente, usados para distinguir situações relacionadas aos grupos humanos regionais ou aos que estavam ali se instalando. Destaque-se, nesse sentido, o relato de Breves, reportando-se às áreas já colonizadas pelos europeus. Nelas, à margem da estrada, de um lado e de outro, podia-se ver que os lotes coloniais verdejavam com as grandes plantações de milho, feijão, alface e fumo, além de já se avistarem parreirais. No centro dos lotes, as amplas casas de madeira, dos colonos de origem italiana, poderiam ser vistas entre as plantações de milho. Dizia-se que aquelas casas eram para os viajantes como um pequeno hotel, e que em qualquer delas, poder-se-ia encomendar um almoço ou pedir uma pousada, pois havia abundância. E conclui dizendo: como era feliz aquela gente!
Após a reflexão elogiosa àquele colonizador, Breves questiona, por que onde se encontravam os caboclos, tudo era diferente? Por que os caboclos não ofereciam este espetáculo de fartura, se as terras eram iguais, se o clima era o mesmo? Chegava à conclusão que os caboclos tinham problemas pela falta de educação e de método para o trabalho. Somava-se a isso a falta de vias de comunicação, de boas estradas e o desinteresse dos caboclos, que diante da possibilidade de aprender a trabalhar da mesma forma dos colonos, falavam em fugir da colonização, em “ir para Pato Branco”, “ir para o Paraná”.
Esse entendimento coincidiu com o período de expansão capitalista na região, simbolizado pela construção da moderna ferrovia, pelo surgimento de indústrias, especialmente ligadas à exploração da madeira e pela comercialização e reocupação das terras. Nisso residia o espírito de modernidade, difundido pelo patronato político, que, para Faoro estava em voga no início do século XX. Para ele, ao brasileiro de então, ser culto e moderno, significava estar em dia com as idéias liberais, acentuando o domínio da ordem natural, a qual se perturbaria sempre que o Estado interviesse na atividade particular.
Também se acreditava que com otimismo e confiança seria conveniente “entregar o indivíduo a si mesmo, na certeza de que o futuro aniquilará a miséria e corrigirá o atraso”. Por mais que, nesse período, as discussões sobre o Brasil apontassem ou buscassem uma imagem de unidade para a nação, na prática prevaleceu a diversidade territorial e humana. Por isso, entende-se de fundamental importância o estudo das especificidades regionais. A região de abrangência desta pesquisa estava distante do que era visto como centro dinâmico da economia e da intelectualidade, seja no âmbito nacional, seja no estadual. Como se evidenciou, no início do século XX, merecia atenção apenas aquilo que tivesse influência de São Paulo e de seus bandeirantes.
Assim, o fato de Cruzeiro ser visto como espaço periférico, põe em destaque a especificidade e a importância de compreender, particularmente, a forma de apropriação da terra, ocorrida no final do século XIX e início do seguinte. Inserida em um período de intensas disputas pela conquista da região, fato que estimulou ainda mais a chamada “conquista do sertão”, para a construção do “Brasil moderno”, também a terra e gente do sertão catarinense “necessitavam ser conquistadas”.
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Fonte:
José Carlos Radin: "Companhias colonizadoras em Cruzeiro: representações sobre a civilização do sertão". (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em História do Brasil, sob a orientação da Professora Drª. Eunice Sueli Nodari). Florianópolis, 2006 .

Nota:
A imagem (Revista " Cigarra", 1921) inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público





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