Filosofia
O PROBLEMA DO BEM NA REPÚBLICA DE PLATÃO
Ao tratarmos do problema do Bem em Platão, optamos por uma interpretação dos Livros V e VI da República, em que o tema se faz mais presente. A República foi escrita em diálogo, tendo como principal interlocutor o personagem Sócrates. Em resumo, podemos dizer que a obra trata de desenvolver no discurso (lógos) uma cidade justa.
Para melhor entendermos o problema do bem, partiremos do final do Livro V, momento em que Sócrates introduz a terceira onda com o intuito de demonstrar a necessidade da filosofia junto ao governo para a realização da cidade justa. Colocamos abaixo a passagem que indica isso:
Enquanto não forem, ou os filósofos reis nas cidades, ou os que agora se chamam reis e soberanos filósofos genuínos e capazes, e se dê esta coalescência do poder político com a filosofia, enquanto as numerosas naturezas que atualmente seguem um destes caminhos com exclusão do outro não forem impedidas forçosamente de o fazer, não haverá tréguas dos males, meu caro Gláucon, para as cidades, nem sequer, julgo eu, para o gênero humano, nem antes disso será jamais possível e verá a luz do sol a constituição que há pouco descrevemos. Mas isto é o que eu há muito hesitava em dizer, por ver como seriam paradoxais essas afirmações. Efetivamente, é penoso ver que não há outra felicidade possível, particular ou pública.[1]
A introdução do filósofo como necessária para a realização da cidade justa traz também a necessidade de defini-lo. Na época de Platão os termos ‘filosofia’ e ‘filósofo’, apesar de estarem em uso, não tinha ainda uma definição bem colocada, o que faz com que Platão para justificar a sua posição tenha que defini-los. Quando se gosta (phileîn) de alguma coisa, se estima não a parte desta coisa, mas a totalidade. Da mesma maneira, se alguém deseja algo, deseja na sua totalidade. O filósofo, portanto, deseja não parte de um saber, mas a sabedoria na sua totalidade[2]. Mas o que se quer dizer com isso? Para melhor situarmos o pensamento, necessitamos fazer uma distinção nos modos de conhecer. Quem conhece, conhece alguma coisa que existe (tò ón), pois não se pode conhecer o que não existe. Portanto, podemos perceber em Platão uma relação entre conhecimento e existência, entre sua epistemologia e sua ontologia, de modo que o que existe absolutamente é absolutamente cognoscível e o que não existe de modo algum é totalmente incognoscível[3]. Posto dessa forma, conhecimento está relacionado ao Ser e ignorância ao Não-Ser. Mas também é possível se pensar algo intermediário ao Ser e o Não-Ser, algo que não tem a plenitude do Ser nem a negação do Não-Ser, sendo esse intermediário a opinião. Façamos aqui uma distinção entre conhecimento e opinião:
(i) Conhecimento pode ser somente o que é verdadeiro; opinião pode ser verdadeira ou falsa.
(ii) Conhecimento é estabelecido por uma relação causal; mesmo a opinião verdadeira não precisa disto.
(iii) Conhecimento não pode ser mudado pela persuasão, opinião pode.
(iv) Conhecimento sempre se mantém o mesmo, imutável e eterno; das coisas mutáveis somente é possível termos opiniões.
A opinião é uma potência (dýnamis) diferente da ciência (epistéme) e tem, portanto, um objeto diferente da ciência.[4] Sendo a ciência a mais forte das potências, é correto dizermos que a ciência se aplica ao Ser e a opinião às aparências. Feito isso, já é possível distinguir aquele que é ‘amigo do saber’ (philósophos) daquele que é ‘amigo da opinião’ (philódoxos)[5]. O filósofo, ao contrário da maioria, segue a essência das coisas, percebendo que estas não são múltiplas, mas na verdade são unas. Ele é aquele capaz de reconhecer a unidade por trás da multiplicidade existente no mundo. Tendo uma natureza diferente dos demais cidadãos, ele tem a capacidade para distinguir a verdadeira realidade das aparências da sensibilidade, de ter ciência ao invés de mera opinião. E, por isso, deve o filósofo ser educado para assumir o governo da cidade. Mas em que conhecer o Bem torna o filósofo diferente?
O Bem deve ser entendido não como uma distinção ética, mas como um valor geral. Se o Rei-Filósofo não puder conhecer o Bem, mas apenas ter opiniões, então não há como distinguir as demais estruturas políticas do modelo proposto por Sócrates na República. Para explicar em que consiste o conhecimento do Bem, Sócrates irá propor uma analogia com o Sol. O Sol é no visível aquilo que o Bem é no inteligível. Enquanto o Sol nos permite ver os objetos da sensibilidade por transmitir luz a estes, o Bem nos permite conhecer os objetos do conhecimento por transmitir verdade a estes. Apesar da luz não ser a visão, sem luz não é possível ver e, da mesma maneira, sem verdade nada podemos conhecer, pois não podemos conhecer as coisas pelo falso. A Forma do Bem é a mais elevada das ciências, por ela que a justiça e as outras virtudes se tornam valiosas. Tal Forma não se encontra na experiência, estando para além desta. O Bem tem por características ser desejável, pleno e métrico, pois é ele o sempre desejável por todos, é autossuficiente e também aquele que permite as coisas do mundo terem uma hierarquia, guiando-as para o melhor. Do contrário, se todas as coisas fossem iguais, teriam também o mesmo valor. Poderemos melhor entender isso, se analisarmos a Linha Dividida[6]. A linha está dividida em quatro segmentos diferentes. Do lado direito temos os objetos do conhecimento, do esquerdo os modos pelos quais conhecemos esses objetos. Os segmentos AB e BC representam o Visível, enquanto os segmentos CD e DE representam o Inteligível. Os segmentos representam as quatro etapas para o conhecimento de objetos pelo sujeito cognoscente (alma). O Visível está no âmbito da aparência, daquilo que está em mudança; o Inteligível está no âmbito da imutabilidade, daquilo que é permanente. As Formas representadas no segmento DE são aquelas que explicam a realidade das coisas sensíveis, pois a Forma é a unidade inteligível da multiplicidade do sensível. Enquanto a maioria pensa existirem muitas coisas belas, o filósofo sabe da existência da unidade dessas coisas belas, desta essência que explica todas as coisas belas existentes no mundo, isto é, a Forma de beleza. A Forma não só explica o porquê das coisas serem como são como também tem uma relação causal direta com essas, de maneira que as coisas só são o que são porque antes a Forma é. A Forma subsiste por si mesma, existindo apesar de todas as coisas e além dessas.
A Forma do Bem, ao estar acima de todos os outros objetos do conhecimento, dá a esses objetos não somente a sua conhecibilidade, mas a sua realidade. O Bem ele mesmo é a causa de todas as coisas. O Bem não é apenas uma base para valorizar o real, é também a causa do ser; é tanto princípio axiológico quanto ontológico. Aprender a Forma do Bem é o resultado último de uma longa e difícil educação na existência das ciências e na dialética. Os filósofos adquirem o conhecimento do Bem, não através de alguma faculdade especial de intuição moral, mas pela descoberta de uma hipótese de sua natureza que é simples, adquirida sobre um tempo de vida da experiência prática e matemática. Se todas as Formas são superlativamente boas, então elas têm a Forma do Bem em comum e, portanto, elas são superlativamente boas porque participam da Forma do Bem.
Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes
[1] PLATÃO. República, 473c11-e4. Utilizamos aqui a tradução de Maria Helena da Rocha Pereira A República (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001). Demais referências à ‘República’ serão abreviadas por Rep. indicando-se em seguida a numeração.
[6] Ver Imagem. Cf. Rep., 509d-511e.
BIBLIOGRAFIA:
SANTAS, G. Knowledge and Governing Well. Opinions and Knowledge, Forms and the Good. In: SANTAS, G. Understanding Plato’s Republic, 2010, p. 120-157.
SLINGS, S. R. Platonis Rempvblicam, recognovit brevique adnotatione critica instrvxit: S. R. Slings. Oxford: Oxford University Press, 2003.
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