Este "aqui" é a Cidadela, um complexo desportivo em Luanda. Foi aqui onde eu deveria ter morado apenas duas semanas e morei durante anos enquanto morei em Luanda. É aqui onde eu volto quando vou a Angola de férias. Não tenho uma mansão, um quintal, uma piscina à minha espera. Mas tinha todo este reino que via do meu apartamento no décimo andar, que me permitia ver a cidade inteira. Que abrange o municipio do Rangel, o Bairro do Marçal, antes de chegarmos aos prédios dos Cubanos, frente ao Hospital Josina Machel. Foi neste prédio que chorei bébé. Que tirei noites de sono à minha mãe. Que o meu berço apanhou fogo, se não fosse a minha irmã salvar-me aos quatro anos, chamando pela minha mãe por socorro, enquanto ela não (ainda) falava. Que aprendi a andar, a correr, a cair. Que passei anos a comer papa Cerelac e até hoje choro por mais. Que o meu pai chorou por não termos nada por comer. Que por falta de dinheiro comemos peixe pisado com batata doce todos os dias durante meses (deve ser por isso que hoje quando vejo batata doce torço naturalmente o nariz). Que cresci com os meus irmãos, a seis (ou mais), numa casa onde cabiam, no fundo, apenas quatro. Onde me apaixonei pelo menino do quarto andar, comecei a namorar com o do quinto sem estar apaixonada por ele, e o do décimo andar fazia-me juras de amor eterno. Onde via a minha irmã passar a vida com os amigos do sétimo, que namoravam com os do nono andar, mas os que kuyavam** a sério, era(m) o(s) do décimo-primeiro. Onde havia a cada mês, um grande boda*** no corredor de um andar qualquer, onde comes e bebes e música alta dominavam o prédio inteiro até as altas horas da manhã. Festas onde eu não era autorizada a ir, porque muito nova, mas como aos doze, já era bem alta, aprendi a kizombar num corredor escuro. Onde dei o meu primeiro beijo trancada no elevador de serviço. Onde a minha mãe não conseguia dormir - até hoje, porque ela ainda lá mora - por causa da discoteca aberta da frente, onde os casamentos começavam com música alta às sextas à noite e só acabavam nos domingos de tarde. Onde da minha varanda, eu podia ver pessoas morar no prédio inacabado da frente. Onde num apartamento como o meu, onde eu morava com a minha família apenas, moravam do outro lado três ou quatro famílias inteiras. Onde vi um homem atirar-se e morrer, por não aguentar mais o sofrimento da sua vida. Onde vi homens, mulheres e crianças tomar banho nus, com bacias de agua que subiam nas costas, por mais de dez andares. Onde vi um dos amigos dos meus irmãos mais velhos querer matar-se e o prédio todo não deixá-lo sozinho. Onde sofriamos cortes de luz constantes, nos quais aprendiamos no início a contar até 10 e a luz voltava, e depois, podiamos esperar horas sem fim até ela voltar. Onde havia falta de agua, e quando a cisterna chegava, era preciso deixar a água correr um pouco pois era turva demais, que seja para beber (impossível), lavar a loiça ou tomar banho sem ficar doente. Onde eu corria em todos os andares, para bater à porta dos amigos, para irmos brincar "là em baixo". Onde eu aprendi a andar de carrinho, de tricíclo e de bicicleta.
Ai ai, grande Cidadela Desportiva, que já foi na Avenida Brasil, em seguida, com o número de mortos nos massacres de 1992, atirados na lagoa de águas paradas que a circunda, foi Avenida dos Massacres até ser a que é hoje e talvez para "sempre", Avenida Hoji Ya Henda. Foi aqui onde eu quase nasci. Esta é a minha casa. Este já foi o meu reino.