E porque a ?aula? tem uma qualidade literária de registar, registámo-la aqui, como leitura obrigatória.
Dra. Maria da Conceição Nogueira
PRESENTE ? PASSADO ? FUTURO - Intertexto literário e de experiência pessoal
«Perfeito é não quebrar
A imaginária linha.»
«Pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto
Sem jamais perderem o fio de linho da palavra.»
É sob a epígrafe destes versos de Sophia de Mello Breyner, essa Deusa da Palavra, que inicio esta modesta intervenção, para, dentro das minhas possibilidades ? prestar homenagem ao Professor, essa figura tão ensombrada, objecto de tantas polémicas, neste mundo labiríntico e conflituoso em que nos encontramos.
Retomando a epígrafe inicial deste texto, quero sublinhar que contra este mundo caótico surge a voz de Sophia com a sua palavra feita de «fio de linho».
«Pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto
Sem jamais perderem o fio de linho da palavra.»
Palavras feitas de ?fio de linho? ? fio inquebrável, incorruptível, fio de que é feita a ?túnica sem costura? ? tecido divino, puro, subtil.
Quer dizer, as palavras de Sophia revestindo-se da pureza e consistência do linho, revelam-nos a inteireza do seu ser e a fidelidade à demanda de um Reino:
«Perfeito é não quebrar
A imaginária linha.»
À demanda de um Reino, Reino que se opõe a habitat, o mundo em que vivemos.
Reino é aquele que cada um constrói e conquista, é a aliança que cada um tece na demanda de algo sem limites, impulsionado por um crescente desejo de conhecer, por uma paixão sempre insatisfeita.
Cito ainda Sophia:
«As imagens atravessam os meus olhos
E caminham para além de mim.»
«Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor.»
Neste mundo conturbado em que vivemos, no habitat em que nos sentimos fechados, a poesia de Sophia transporta-nos para um mundo de amplidão, de claridade ? um mundo de sentido misterioso, em que as fontes de inspiração surgem transformadas em exemplos de pureza, de perfeição, de harmonia.
Mas, porquê citar Sophia de Mello Breyner?
É que para Sophia escrever é uma missão, tal como conhecer é um anseio de partilha com os outros:
«A poesia (?) pede-me que viva sempre, que nunca durma, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.»
É que Sophia vive sempre atenta para ?dar nome às coisas?, denunciá-las, descobrir-lhes o sentido:
«Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha.»
Eis a sua Inscrição, isto é, o seu compromisso com a realidade circundante, o seu profundo empenhamento, a sua constante disponibilidade.
Não deverá ser esta também a Inscrição do Professor?
O mundo que Sophia nos aponta não servirá de paradigma para o transmitirmos aos que nos sucedem?
Após este momento de reflexão, proponho uma ?viagem? através de significativos, melhor, plurissignificativos textos literários que, cruzando-se com a minha experiência docente, documentarão a temática proposta ? PASSADO ? PRESENTE ? FUTURO.
Esta trilogia temporal, inserida, aliás, nos conteúdos programáticos escolares, além de ser uma das preocupações básicas de todo o ser humano, constitui uma manifestação evidente desde a Arte Clássica até à Modernidade, continuando no tempo actual.
Assim, Horácio, poeta latino, que viveu no século I a.C., finaliza o seu III Livro das ?Odes?, dizendo: ?Acabei um monumento mais duradoiro que o bronze, mais alto que as pirâmides: nem a chuva que desgasta, nem o vento desabrido o poderão destruir, nem a sucessão interminável dos anos ou a fuga do tempo. Não morrerei completamente: uma grande parte de mim mesmo escapará à Morte. Crescerei continuamente, e a posteridade, pelos seus elogios, conservar-me-á jovem.
Este pensamento e ?modus vivendi? horacianos vão ressurgir no Modernismo,
Assim, numa das Odes reisianas, ler-se-á:
«Seguro assento na coluna firme
Dos versos em que fico,
Nem temo o influxo inúmero futuro
Dos tempos e do olvido.
(?)
Assim na placa o externo instante grava
Seu ser, durando nela.»
Ambos os textos que acabamos de ler reflectem a concepção da imortalidade do Artista através da obra realizada. Quer dizer, o Presente inclui não só o Passado como também o Futuro.
E até Álvaro de Campos, o ?poeta sensacionista e por vezes escandaloso?, como o define o próprio Pessoa na sua conhecida carta a Casais Monteiro, sobre a génese dos heterónimos, até Álvaro de Campos ? o mais modernista dos diversos ?eus? ou ?não-eus? de Pessoa, o engenheiro naval, autor de um extenso cântico ao Progresso ? a ?Ode Triunfal? ? onde exalta a máquina, a velocidade, a força mecânica, admite a fusão de todos os tempos num único ? o Momento absoluto:
«Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro.
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro.»
Ocorre-me neste momento o controverso conceito de Saudade de Teixeira de Pascoaes, alvo de juízos tão contraditórios. Eis uma citação de uma das suas obras ?Regresso ao Paraíso?, definindo a ?lírica Figura? da Eva paradisíaca:
«Sou a esperança, ou antes a saudade:
A esperança é saudade do futuro,
A saudade é esperança no passado.»
Quer dizer, a saudade tem um poder presentificador, tanto do passado como do futuro. Se o que foi ainda é, por virtude da memória; o que há-de ser, já é, por virtude da fantasia. Em resumo, Saudades do que foi e do que há-de ser.
Não poderia continuar este percurso literário sobre a ?presença da ausência?, sem citar um conhecido excerto do ?Prefácio dos Azulejos do Conde de Arnoso?, em que o imortal escritor poveiro, Eça de Queirós, nosso conterrâneo, por meio de um registo de discurso abstracto, amplifica a ideia de ?ficabilidade?, isto é, a ideia de ?duração? através da obra escrita, alargando-a a toda a Arte: ?... a Arte oferece-nos a única possibilidade de realizar o mais legítimo desejo da vida ? que é não ser apagada de todo pela morte. (...) ... a única esperança que nos resta de não morrermos absolutamente como as couves é a fama, essa imortalidade relativa que só dá a Arte?. E quase a finalizar, acrescenta: ? A Arte é tudo porque só ela tem a duração ? e tudo o resto é nada!?. Inicia ainda o parágrafo seguinte por um discurso repetitivo que termina particularizando o valor do livro: ? A Arte é tudo ? tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo?.
Relembro, também, Agustina Bessa-Luís. O seu romance A Sibila é essencialmente o tempo de Quina, a protagonista, à procura do ser, isto é, a personagem entrega-se a um tempo absoluto donde resulta a abolição momentânea do tempo, colocando a personagem numa situação mítica. Quina não é apenas um indivíduo vivendo o seu tempo, ela confunde-se com os seus predecessores, em busca do Arquétipo. Quer dizer, passado, presente e futuro estão dispostos num único plano, sendo em certo sentido simultâneos. A própria ?Casa da Vessada? representa a fusão dos tempos: nela não se distingue apenas uma existência individual, mas os traços intemporais de uma geração.
Direi o mesmo da nossa Escola. As suas paredes, corredores, salas e objectos guardam marcas do Passado, falam-nos de quantos por lá passaram. Não são testemunhas totalmente mudas.
Como se lê
E cito ainda: ?Há coisas muito estranhas... uma frase, como um gesto e um rosto sucedem-se intactos duma a outra época ...?.
Depois deste percurso literário ? é assim que eu viajo ? através de alguns dos magos da escrita, que estudei apaixonadamente com e para os meus alunos, que estudei e que continuo ainda a estudar, que me diz a minha experiência sobre este trinómio PASSADO ? PRESENTE ? FUTURO?
Professora de Português ao longo de três décadas, tive oportunidade de prosseguir o seguinte objectivo, que considero uma felicidade: ?Fazer gostar aos outros aquilo de que gostamos?. Sentimo-nos, deste modo, projectados nos outros, naqueles a quem ensinamos, aprendendo; naqueles que, agora, felizmente, encontramos no nosso lugar. Disse muitas vezes, aos meus alunos: ?Se tivesse de escolher novamente a minha profissão, escolheria a mesma.?
Assim se entende nesta perspectiva de Escola, a temática PASSADO ? PRESENTE ? FUTURO ? Bola de Neve que se vai formando ao longo das gerações. É que uma Escola não é apenas uma massa de cimento e pedra. Uma Escola implica toda uma geração que pode ser revivida em qualquer lugar e momento.
E dela fazem parte não só os vivos como os que já partiram, que só estarão verdadeiramente mortos, se os esquecermos.
Permitam-me um momento de presentificação para os nossos Grandes Ausentes, companheiros de trabalho, que viveram connosco lado a lado, partilhando o seu saber, a sua experiência, ajudando-nos a resolver as nossas dúvidas e problemas.
É que de uma Escola fazem parte os que por lá passaram, os que passam agora e os que passarão depois.
Para concluir: creio que todos nos sentimos fortemente ligados a esse espaço ? a Escola ? que nos une a todos. Portanto, Escola entendida como Geração, como espaço por onde caminhámos grande parte da nossa vida, se não a maior parte e por onde fomos deixando marcas de nós próprios. Razão tem Henri Frédéric Amiel, quando afirma em Fragmentos de um diário íntimo: ?Chaque jour nous laissons une partie de nous-mêmes en chemin? («Cada dia deixamos uma parte de nós mesmos pelo caminho»), reflexão que impressionou profundamente Miguel Torga, a ponto de a escolher como epígrafe para os dezasseis volumes do seu Diário.
E essa ligação de que falava faz com que o passado se torne continuamente presente, evoluindo para um futuro a que gostaria de lembrar a mensagem de Sebastião da Gama, de todos conhecida, mas quantas vezes esquecida: ?O segredo é amar (...). Amar numa dádiva total (...) sem cálculo nem medida (...) a vida só é vida quando actuante na responsabilidade maravilhosa de nos sabermos vivos de olhos, ouvidos e coração abertos?.
A finalizar, um juízo crítico, que, de certo modo, poderá ser considerado a versão moderna destas palavras de Sebastião da Gama. É de George Steiner, autor de ?Errata: Revisões de uma vida?: ?Mesmo nas horas piores sou incapaz de abdicar da convicção de que as duas maravilhas que validam a existência mortal são o amor e a invenção do tempo futuro?.
Dra. Maria da Conceição Nogueira ? Directora do ?Boletim Cultural da Póvoa de Varzim?
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Agradeço ao amigo Miguel Loureiro pela oportunidade de publicar esse belo texto reflexivo da prof. Dra. Maria da Conceição Nogueira.
Fontes:http://rcpvarzim.blogspot.com/ e http://www.profblog.org/
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