Filosofia
19 de novembro, dia mundial da Filosofia - Uma reflexão necessária: a formação acadêmica
By Paulo Ghiraldelli
Há uma falsa contraposição nas discussões sobre como fazer filosofia.Particularmente no Brasil, a polêmica em torno dessa contraposição tem
durado mais tempo que em outros lugares. Segundo tal contraposição, uns
acham que estamos nos afastando da história da filosofia, e que isso é ruim.
Outros acham que ainda estamos só fazendo história da filosofia, e istoseria uma triste tendência uspiana; deveríamos trabalhar com ?temas eproblemas? ou com a ?tarefa do pensamento?. Mas, na verdade, não é isso que ocorre e nem poderia ocorrer. Filosofia com?temas e problemas? (ou qualquer outra coisa) e história da filosofia não seseparam. Não se separam não porque não queremos, mas porque não podem. Seriaa própria destruição da filosofia. Não há como investigar ?temas e problemas? em filosofia ou mesmo emfilosofia aplicada sem estar integrado no âmbito da história da filosofia.Não há como estar integrado no âmbito da história da filosofia sem se estarem alguma polêmica do interior desta e, portanto, sempre que se está aíintegrado se está envolvido com algum problema. Quem separa história da filosofia e discussão de temas e problemas nãoentendeu como é que a filosofia se faz e caminha. Há dois modos de nãoentender isso. Um primeiro é acreditando que a história da filosofia é algocomo que um filme que passa na nossa frente, e nos conta algo que ocorreu. Isso nunca acontece com a filosofia. A história da filosofia chama osfilósofos para seu interior, de modo a convidá-los para o debate comfilósofo do passado ou de presente. Chama também o iniciante em filosofia oumesmo aquele que não é filósofo nem quer sê-lo, mas que é inteligente econsegue ler e ouvir de forma participativa. Caso o convidado não aceite oconvite, ele nunca conseguirá compreender história da filosofia. A históriada filosofia é diferente de todo outro tipo de história cultural. Ou se estáno seu interior contribuindo com sua própria construção ou não se é alguémcapaz de compreendê-la. É claro que cada participação tem um grau de profundidade. Nossa capacidadede participar da história da filosofia vai da participação que serve só paranós mesmos até a participação que é altamente criativa e que acaba porservir a muitos outros. Os protagonistas deste segundo caso podem, então,integrar a historiografia da filosofia além de pertencer à história dafilosofia. Outro modo de não entender as coisas é acreditar que alguém pode filosofar,ou seja, pode dar conta de problemas filosóficos ou problemas cotidianos quepodem ser abordados filosoficamente, sem que se tenha feito isso já nointerior de uma discussão com filósofos do passado e do presente, ou seja,já no âmbito da história da filosofia. Não há como fazer tal coisa. Um tema e um problema, por mais inédito que seja, tem um pé em algo que vaiser sua tradição. Os filósofos mais alheios ao chamado conteúdo ?histórico?sempre foram grandes historiadores da filosofia. Às vezes nos enganamos eachamos que um bom filósofo que escreve ensaios não históricos não éhistoriador da filosofia, mas, em geral, ele é um historiador da filosofia. O estilo do ensaio que coloca para o público omite isso explicitamente, masele, na hora de escrever, sabia o que estava falando do ponto de vistahistórico e sabia muito bem como que o debate o levou a escrever do modo queescreveu. Ele estava de fato integrado na história da filosofia. Portanto, cada vez mais o filósofo atual é acadêmico, e isso no sentido deque ele precisa passar por um período de formação que envolve treinamentodado em universidades. É claro que esse treinamento, no Brasil, tem deixadoa desejar. A graduação em filosofia e nossos mestrados e doutorados padecem dos malesgerais do nosso ensino, adicionados aos males específicos de uma falta detradição filosófica mais substancial. Mas, ruim com a universidade, pior semela. Quem se recusa a dar crédito para a universidade, em geral faz algo bempior do que o que se faz na universidade. Poderíamos melhorar nosso treinamento para formar filósofos e professores defilosofia. Minha sugestão é que as escolas ficassem atentas para esseselementos abaixo. 1) A graduação não deveria privilegiar especializações precoces; a amor atodo tipo de filósofo e a todo tipo de área filosófica e cultural deveriaser uma regra. Na graduação não há razão para se gostar mais de Descartesque de Heidegger ou Sade. Muito menos há razão para se desprezar filosofiamedieval diante de filosofia moderna. Cada professor de curso de filosofia,uma vez que em geral é um scholar de um filósofo, um estudioso (dado seumestrado e doutorado), deveria ficar atento para saber que o que ele tem demostrar na graduação é a filosofia em geral, e não o ?seu? filósofo.Deveria, inclusive, se perguntar se essa idéia de ?seu? filósofo já não éuma formação equivocada dele mesmo, que o faz incapaz de criar e de poderdar melhor consistência para seus estudantes. 2) A formação na graduação deveria insistir no filósofo escritor, ou seja,em alguém que deve ter capacidade de escrever corretamente, de modo elegantee, em alguns casos, de modo jornalístico. Para tal é necessário que opróprio professor escreva corretamente e corrija os alunos. Qual a razão denão mais se corrigir aluno? Nenhuma! Ainda mais na filosofia, onde aprodução do texto é algo primordial. 3) A formação na graduação não pode descuidar de uma língua estrangeira. Ouse sabe uma língua estrangeira já na graduação em filosofia ou se estarácondenado a ser um profissional de terceira categoria. Nesse caso, não hárazão para insistir na prioridade do alemão e do francês. O inglês deveriaser algo tão básico quanto o português nos nossos dias. 4) Todas as principais abordagens filosóficas deveriam ser incentivadas ?neste caso, deveríamos pensar a filosofia a partir das grandes correntes.Não se trata da ?filosofia a partir dos ismos?, e sim da filosofia a partirdas grandes concepções sobre como filosofar e o que é o objeto da filosofia.O exemplo abaixo, no qual tomo a filosofia moderna e contemporânea, deveservir para que o leitor compreenda o que quero dizer. Quando Bacon abre a modernidade propondo uma teoria do erro, a crítica dos?ídolos?, ele traça um panorama geral que diz que nos equivocamos a partirde defeitos de fabricação que todos nós possuímos. São problemas da nossanatureza humana (ídolos da tribo) ou de nossa situação individual (ídolos dacaverna); são também as dificuldades dadas a partir de nossa associação queé feita através da linguagem, sendo esta, por sua própria origem vulgar,imprecisa (ídolos do foro); e, por fim, também erramos pela filosofia eciência (ídolos do teatro). Podemos levar a sério esse panorama prospectivo de Bacon e ver que afilosofia, depois dele, veio como que um detetive tentando encontrar oresponsável pelo equívoco ou erro na razão (século XVII e XVIII), nahistória e sociedade (século XIX), na linguagem (século XIX e XX) e, enfim,na ciência e filosofia (XX e XXI). Ao brincarmos de ler esse grande conto dedetetive vamos eleger esses suspeitos do crime ? do erro ? como objetos dafilosofia e, então, teremos de nos envolver com cada um deles. Sem nosenvolver com cada um desses objetos não acompanharemos a investigação dodetetive ? a filosofia. Agora, devemos pensar também que para cada objeto aparecem detetivesauxiliares e competidores que fazem uma investigação particular e de mododiferente. Assim, para cada século apontado acima, temos vários tipos deinvestigação ? elas criam os ?ismos?. Mas eles são secundários em relação aoobjeto. É a partir do objeto que nos envolvemos com os filósofos e osacompanhamos no processo de ver se o apontado culpado é mesmo o culpado. Esse exemplo serve apenas se aceitamos, de ponto de partida, a visão deBacon sobre a modernidade. Mas, o leitor deve considerar, trata-se apenas deum exemplo, para que se entenda onde quero chegar, que o mostrar que umavisão global da filosofia passa pelos objetos eleitos e vice-versa, e que umcurso de graduação deveria dar conta disso. Essa é uma forma gostosa de lidar com a filosofia. Depende de erudição ecompetência do professor de graduação, que não pode ser mero professor, temde ser filósofo. Mas, se não sonharmos grande e se não acreditarmos quepodemos fazer isso, nada conseguiremos. Bem, volto aos quatro itens citados. Nenhum deles é mais ou menosimportante. Eles devem ser levados em consideração no conjunto. Há um modode fazer isso? Claro que há. Bastaria começar a pensar em uma faculdadeparticular gratuita e com alojamento para alunos que pudesse, com essaestrutura e essa autonomia de base, criar esse tipo de ensino. E não éimpossível de fazermos isso no Brasil. Talvez um modelo assim pudessearrastar outros, em outras faculdades.
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?Filosofia e história da filosofia não se separam. Não se separam não porque não queremos, mas porque não podem. Seria a própria destruição da filosofia?
Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo e diretor do Centro de Estudos em Filosofia
Americana (http://www.filosofia.pro.br ).
Artigo enviado pelo autor ao ?JC e-mail?:http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=60045JC e-mail 3645, de 19 de novembro de 2008.
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