Leitura: quem começa não para mais
Filosofia

Leitura: quem começa não para mais


Jornal Mundo Jovem
Entrevista publicada na edição nº 394, março de 2009.


Elisabeth Dangelo Serra
Há muitos anos o jornal Mundo Jovem divulga o bordão ?Ler é uma atitude inteligente?, uma ideia que se confirma nesta entrevista.
Elisabeth D?angelo Serra, fala da leitura como companhia na formação e como instrumento de acesso à cidadania, mesmo em tempos de novas tecnologias e advento da internet.

Elisabeth Dangelo Serra,
secretária geral da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.
Endereço eletrônico: [email protected]
Site: www.fnlij.org.br


Mundo Jovem: Qual a importância da leitura para os jovens?

Elisabeth Dangelo Serra: A leitura no mundo moderno é a habilidade intelectual mais importante a ser desenvolvida e cultivada por qualquer pessoa e de qualquer idade. Os jovens que não tiveram a oportunidade de descobrir os encantos e os poderes da leitura terão mais dificuldades para realizar seus projetos de vida do que aqueles que escolheram a leitura como companhia. Apesar dos atrativos atuais trazidos pelas novas tecnologias, hoje há um número expressivo de jovens que leem porque gostam e ao mesmo tempo são usuários da internet.

Aqueles que são leitores têm muito mais chances de usufruir da internet do que aqueles que não têm contato com a leitura de livros, jornais e revistas. Contudo é a leitura literária que alimenta a imaginação, a fantasia, criando as condições necessárias para pensar um projeto de vida com mais conhecimento sobre o mundo, sobre as coisas e sobre si mesmo. Uma mensagem: nunca é tarde para começar a ler literatura. Portanto aqueles que não trilharam esse caminho e desejarem experimentar, vale a pena tentar.


Mundo Jovem: Índices apontam que a leitura cresce no Brasil, mas no senso comum há o sentimento que não...

Elisabeth Dangelo Serra: O acesso aos livros aumentou, principalmente nos últimos 15 anos. Os programas dos governos de compra de livros de literatura para as escolas do Ensino Fundamental mudaram o cenário de 20 anos atrás. Hoje, a quase totalidade das escolas públicas brasileiras tem um acervo de livros de literatura de qualidade para uso de seus professores e alunos.

Mas, para que essa conquista resulte efetivamente em mais leitores, tem que estar integrada com outras ações dos governos e da sociedade em que a leitura seja considerada um bem cultural desejado e valioso. Quero dizer com isto que, por exemplo, a formação dos professores do Ensino Fundamental e Médio deve ter o seu eixo principal na leitura e na escrita. Somente com professores que sejam leitores será possível exigir dos alunos que eles leiam, interpretem e escrevam com fluência.


Mundo Jovem: Como nos tornamos leitores, como desenvolvemos o gosto pela leitura?

Elisabeth Dangelo Serra: Só há uma maneira de nos tornarmos leitores: lendo. E essa atitude é cultural, ela não nasce conosco, tem que ser desenvolvida e sempre alimentada. O entorno cultural em que a pessoa vive é determinante para que a habilidade de ler tenha chances de crescer. Ela é fruto do exemplo e das oportunidades de contato com a cultura letrada, em suas diversas formas. O exemplo e as oportunidades são criados por adultos que estão próximos às crianças e aos jovens.

Cabe aos professores brasileiros uma carga muito pesada, já que a maioria das famílias não tem chances de comprar livros, jornais diários e revistas semanais, dificultando o acesso ao texto escrito nas casas. Para que os professores possam desempenhar essa função, as escolas devem oferecer as condições para eles agirem de maneira a suprir essa falta, o que significa oferecer meios para uma formação continuada, ter bibliotecas com livros novos e variados e um projeto pedagógico em que o convívio com os livros e a leitura esteja no centro dos trabalhos e dos int eresses de todos.


Mundo Jovem: Há exemplos de projetos eficazes de leitura que acontecem no Brasil?

Elisabeth Dangelo Serra: Inspirada no exemplo do International Board on Books for Young People (IBBY), a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) criou, em 1994, o primeiro concurso para os melhores programas de incentivo à leitura. Estamos já na 13ª edição do concurso que serviu de base para o Prêmio Viva Leitura. Os vencedores desses concursos são projetos com perfis diferentes (escolas, bibliotecas e sociedade civil) e mostram experiências em que os livros e a literatura são o centro do trabalho e apresentam como resultados o interesse por livros e o desempenho dos alunos e dos que frequentam ambientes de leitura.

Para que pudéssemos medir a eficácia desses projetos, seria necessário saber o que ocorreu com eles depois de alguns anos. Juntamente com o Instituto Ecofuturo, estamos trabalhando no sentido de avaliar o trabalho que realizamos em bibliotecas comunitárias implantadas pelo instituto, por meio de especialistas. O fruto dessa investigação visa a criar indicadores de leitura que poderão medir a eficácia dos pro etos de leitura. Porém, pela maneira tradicional, sabemos que os alunos com bom desempenho em leitura e escrita são aqueles que melhor se posicionam nos exames escolares. E isso não mudou.


Mundo Jovem: Qual a realidade e quais os desafios colocados para as bibliotecas escolares e comunitárias.

Elisabeth Dangelo Serra: Ao tomarmos como referência a situação dos sistemas de bibliotecas escolares, públicas e mesmo comunitárias em países desenvolvidos, a realidade de nossas bibliotecas é desanimadora. Os esforços de alguns bibliotecários e professores para mudar esse quadro vêm de anos e anos sem que na prática algo de essencial tenha mudado o cenário da política de acesso aos livros por meio da biblioteca.

Houve um momento em que algumas experiências com bibliotecas escolares e públicas tiveram sucesso em alguns estados, mas, como não temos o hábito de aprender com a história, elas ficam esquecidas. Não há, ainda, em nosso país, uma valorização do uso coletivo de livros como a maneira de se partilhar acervos para que todos possam usufruir dos mesmos livros. Portanto não há uma política pública que, de fato, esteja interessada em oferecer Bibliotecas, com B maiúsculo, para todos.


Mundo Jovem: Que projetos a escola pode implantar para garantir a promoção da leitura?

Elisabeth Dangelo Serra: A escola deve iniciar o projeto pela criação de uma biblioteca, por menor que seja, abri-la todos os dias e todos os horários e orientar os professores para que a usem como fonte de referência para seus planejamentos e para suas leituras, além de ser local de visita livre, e também obrigatória, por parte dos alunos.

O projeto pode contemplar grupos de leitura livre para os professores e grupos de estudo na biblioteca. Ela deve estar aberta às famílias que deverão ser convidadas a participar de suas atividades e mesmo contribuir, como voluntárias, para a sua organização. As feiras de livros e os encontros com escritores serão eficientes se a leitura fizer parte central do projeto da escola e a biblioteca for o seu coração de onde emanam as ideias, os questionamentos e os projetos e também o lugar para simplesmente desfrutar a leitura.


Mundo Jovem: Como a literatura impressa está convivendo com o advento da internet e das novas tecnologias?

Elisabeth Dangelo Serra: Acho que nunca houve tanto livro de ficção impresso como agora. Como é natural, há coisas com qualidade e outras não. A internet tem possibilitado a divulgação imediata do que está sendo publicado e facilita o acesso ao que já existe. O futuro, como sempre, é um exercício de ficção. Sou do grupo que acha que as novas tecnologias não tiraram, nem vão tirar, o prazer de ler um livro de literatura. Pode ser uma certeza das gerações que tiveram o livro como principal referência cultural, mas não sou radical.

Se alguém sentir a mesma emoção ao ler um texto literário na tela do computador que uma pessoa sente lendo no livro, e se isto possibilitar que ambos pensem sobre o que leram e possam trocar suas opiniões, sentimentos e ideias é o que importa. Essa é a função integradora da literatura. A escrita literária faz-nos olhar as palavras de maneira única e especial, e mobiliza-nos para, ao mesmo tempo em que nos deliciamos com elas - as palavras -, possamos viver uma história que nos leva a entrar pela página adentr , ou pela tela, levados pelo fascínio dessa construção artística que poucos dominam. Ler um texto literário é uma experiência única e intransferível cujas impressões e reflexões ganham novas interpretações quando podem ser compartilhadas.

Mundo Jovem: Quais livros seriam importantes que os jovens lessem no Brasil?

Elisabeth Dangelo Serra: Os livros que qualquer jovem de qualquer parte do mundo não podem deixar de ler são os clássicos universais e os de seus países e, assim, conhecer a história do pensamento e o patrimônio universal da humanidade. Devem procurar conhecer também o que há de novo e aqueles que ganharam prêmios. Para isso, é bom ler os suplementos literários, visitar as livrarias e ver os livros que mais despertam a curiosidade, sem nenhuma regra ou orientação. A construção do leitor passa por ler coisas sem qualidade também. Ouvir as sugestões de professores, pais e amigos é mais um caminho. No site da FNLIJ (www.fnlij.org.br) está a lista dos livros premiados, desde 1974, por categoria: jovem, tradução jovem, informativo, poesia e teatro... Enfim, cada um deve ir construindo o seu próprio acervo de livros.

Mundo Jovem: Todo bom professor é um bom leitor?

Elisabeth Dangelo Serra: Eu acredito firmemente que todo bom professor é um bom leitor e vice-versa. Considero um bom leitor aquele que tem na literatura o seu alicerce principal que é o que abre as portas e consolida, embora não termine nunca, a condição de ser leitor. Formar professores leitores é dar condições para que eles tomem a leitura literária como parte das suas vidas. Sem desfrutar dessa leitura, dificilmente o professor contribuirá para que seus alunos sejam leitores.



A leitura começa em casa

A família é decisiva para incentivar a leitura. Além do exercício intelectual partilhado, a leitura entre pais, filhos, irmãos, tios e avós agrega o componente afetivo de maneira muito forte, fortalecendo o ato de ler. Ler junto é dar afeto também.

Nas famílias com poder aquisitivo para comprar livros e que já estejam motivadas para ler com seus filhos e conversar com eles sobre os livros, essa tarefa é mais fácil. Eles sabem o quanto esse ato é importante para a educação dos filhos e para fortalecer os laços de amizade na família. Difícil é para as famílias mais pobres que não podem comprar livros e que muitas vezes não são elas mesmas leitoras. Nesses casos, temos conhecimento de ocorrências no sentido inverso que são emocionantes.

Os filhos de pais analfabetos levam a leitura para seus pais que, orgulhosos e curiosos, partilham o ato de ler como um bem precioso. Mesmo sem serem leitores, eles sabem que isso vai proporcionar uma vida melhor do que a que tiveram para seus filhos.

O analfabeto percebe, melhor do que ninguém, o que é estar alijado do mundo à sua volta por não saber ler e interpretar com independência. Por isso, ele quer para seus filhos a condição de letrados. É obrigação de todos nós, que temos o privilégio de sermos leitores, enfrentar os entraves criados por uma sociedade brasileira elitista e conservadora para que todos tenham a oportunidade de trilhar o caminho da leitura e decidir, por eles mesmos, se querem continuar nele ou não. Essa é uma decisão pessoal de cada um desde que as condições sejam dadas e garantidas pelos governos com bibliotecas escolares, públicas e professores e bibliotecários formadores de leitores.


Fonte: http://www.mundojovem.pucrs.br/entrevista-03-2009.php



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