Revolução na escola
Filosofia

Revolução na escola


Como o novo Enem vai mudar a forma de transmitir e avaliar o conhecimento nas instituições de ensino. E essas transformações começam na alfabetização

Por Francisco Alves Filho e Suzane G. Frutuoso

FOTOS: JULIA MORAES, FREDERIC JEAN - AG. ISTOÉ. AR

Uma nova educação está batendo às portas das escolas brasileiras. Com atraso, é verdade. Durante décadas nosso aprendizado permaneceu focado em ler, escrever e calcular. Educadores e governo esqueceram que o ser humano precisa de compreensão ampla sobre o cotidiano e o mundo para interagir de maneira saudável com a vida. Agora, o pensar será privilegiado no lugar do simples memorizar.
O novo conceito do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a ser testado nos dias 3 e 4 de outubro, será o passo decisivo de uma revolução na educação do País. Para os alunos se saírem cada vez melhor nele e terem a oportunidade de ingressar em universidades de qualidade, as escolas já estão repensando o jeito de ensinar, desde a educação infantil.



Confiança no conteúdo
Felipe e Andressa: bem preparados com o ensino do Vértice, em São Paulo

Em maio foi divulgada a reformulação da prova, criada em 1998. As alterações serão decisivas para boa parte dos cerca de 1,5 milhão de estudantes que ingressarão na universidade no ano que vem. Se antes as 63 questões cobravam organização de informações, interpretação de textos e gráficos, mas num apanhado de testes engessados por disciplinas sem diálogo entre si, na atual versão haverá uma divisão por áreas (leia quadro à pág. 84).
Isso exige raciocínio lógico, compreensão do conteúdo estudado no ensino médio e o uso do conhecimento de disciplinas distintas em uma mesma solução. A prova será mais trabalhosa, com 180 questões de múltipla escolha (além da redação), e em dois dias de testes.
O modelo é parecido com o SAT, elaborado em 1926, nos Estados Unidos, para o ingresso nas universidades americanas. Como o método prima pela excelência, a famosa decoreba não tem vez. Será assim também com o novo Enem. E é justamente o que obrigará as escolas a se adaptar.




"O saber é mutável e, hoje, atualizado com rapidez", diz Neide Noffs, diretora da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). "Em curto prazo, memorizar é irrelevante. Iniciativa e entendimento devem ser estimulados."
Para isso, as instituições de ensino terão de oferecer aos estudantes a oportunidade de debater um mesmo assunto em várias matérias do currículo escolar, de maneira integrada. No Colégio Rio Branco, em São Paulo, temas da atualidade, como a gripe suína, são enfocados do ponto de vista da geografia, da matemática, da história, da sociologia.
"O excesso de fragmentação das disciplinas, transmitidas de modo isolado ao jovem, impede o aproveitamento significativo do aprendizado na vida dele", diz a diretora Esther Carvalho. Essa proposta de educação não é nova. A determinação existe há 11 anos, quando foram instituídas pelo Ministério da Educação (MEC) as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.
Fora os colégios de elite das grandes metrópoles, que têm recursos para investimentos em pessoal e infraestrutura, a maior parte do sistema educacional não adotou os parâmetros. Com o Enem, as escolas foram forçadas a isso. "O exame se tornou uma cobrança oficial", afirma Heliton Ribeiro Tavares, diretor de Avaliação da Educação Básica do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Os professores também serão obrigados a se atualizar. Quem não voltar a estudar e valorizar a transmissão de um ensino inteligente, está fadado a ficar para trás. O aluno está antenado 24 horas por dia, por todos os meios possíveis, graças ao acesso à tecnologia.
Precisa, porém, aprender a organizar tanta informação. "Ele traz o novo ao professor", diz Gracia Klein, diretora pedagógica do Colégio Pentágono, em São Paulo. Esses profissionais não podem mais negar que os alunos pensam junto com o mestre.
Por exemplo, o professor que ignora a capacidade de quem alcança o resultado de uma equação por um caminho diferente da fórmula predeterminada não está aberto para a interação e o questionamento. E a figura autoritária não é respeitada pelo estudante do século XXI. Não é surpresa perceber que as escolas mais bem colocadas no ranking do Enem são justamente as que oferecem um ensino baseado na interdisciplinaridade e investem na formação da equipe.
Em São Paulo, professores de colégios badalados ganham em média R$ 7 mil, por 40 horas de aula semanais. Eles são titulados e recebem toda a estrutura necessária dos empregadores para aperfeiçoamento. "Depois da publicação dos resultados do Enem, escolas de outros Estados vêm nos visitar para conhecer a metodologia que aplicamos", diz Adilson Garcia, diretor do Colégio Vértice, o primeiro no ranking da capital paulista.
Em cinco anos, a escola passou de 600 alunos para 900, tamanha a procura. Para cada uma das 100 vagas oferecidas anualmente, há cerca de oito famílias interessadas. No Colégio São Bento, no Rio de Janeiro, primeiro colocado no ranking nacional do Enem, a constância do modelo de ensino é o que o leva ao sucesso. "Não preparamos o aluno para este ou aquele tipo de vestibular", diz Pedro Araújo, coordenador de ensino médio. "Procuramos dar uma preparação sólida."


Pensando no futuro
No primeiro ano do ensino médio, Caio já estuda com foco no processo de seleção para a universidade
Estudar numa escola com mestres motivados, bem estruturada e incentivadora do raciocínio traz confiança aos candidatos a uma futura vaga nas melhores universidades. "Estou sendo preparado desde já", diz Caio Becker, 16 anos, estudante do primeiro ano do ensino médio do Centro Educacional da Lagoa, no Rio de Janeiro.
Felipe Cabral, 17 anos, aluno do terceiro ano do Vértice, diz sentir segurança com o que aprendeu na escola para disputar uma das vagas de engenharia da computação em instituições de calibre. "Nenhum cursinho me prepararia melhor", afirma. Sua colega Andressa Mendonça, 17 anos, é da mesma opinião.
"Tive contato com pessoas de outras escolas e percebi que estou mais bem preparada", fala a jovem, que sonha com a carreira de arquiteta. O Enem se tornou um indicador de qualidade tão importante que pais de crianças já escolhem a escola dos filhos usando o ranking como critério.
Com dois filhos ainda no ensino fundamental, a arquiteta Carla Pimentel resolveu que eles deveriam ingressar numa escola que rendesse bons resultados no exame nacional. No ano passado, transferiu Maria Inês, 12 anos, e João Vitor, 14, para o Liceu Franco- Brasileiro, no Rio de Janeiro. "Escolhi o colégio porque está bem colocado no ranking", afirma. "Isso me dá a certeza de que há chances maiores de acesso a boas universidades e também no mercado de trabalho."
A preocupação é válida, mas precipitada. Primeiro por não existirem garantias - apesar de ser a hipótese mais provável - de que as escolas campeãs no Enem hoje continuem assim com o passar do tempo. Segundo, porque vale mais optar por uma instituição na qual os valores são semelhantes aos da família da criança.
"Não adianta colocar no colégio rígido por ser o melhor, se em casa a educação é mais liberal", diz Osmar Ferraz, coordenador de vestibular do Colégio Bandeirantes, em São Paulo. Por fim, deixar a criança numa escola em que ela não consegue acompanhar o ritmo puxado pode ser um massacre, que gera traumas e interfere na boa formação



Mobilidade estudantil
Para Miguel Jorge, concorrer em mais de uma universidade é vantagem da prova
"Com o novo Enem haverá uma democratização do acesso ao ensino superior. É um avanço"

Miguel Roberto Jorge, pró-reitor de graduação da Unifesp
Pais que desejam garantir uma educação de qualidade devem ficar atentos se a escola escolhida está adaptada às atuais regras do ensino fundamental. Antes, era obrigatório dos 7 aos 14 anos (da 1ª a 8ª série). A nova faixa etária vai dos 6 aos 14 anos (do 1° ao 9° ano). Além de um ano a mais de estudo, as diretrizes pedem espaço ao conceito de letramento, que significa ensinar as crianças a ler e escrever compreendendo a essência dos exercícios.
O raciocínio lógico também passa a ser valorizado desde cedo. É nessa linha que segue o Pisa (sigla em inglês para Programa Internacional de Avaliação de Alunos), promovido a cada três anos pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que mede o conhecimento entre jovens de 14 e 15 anos de diversas nações. E o Brasil vai mal. No último resultado, de 2007, os alunos brasileiros obtiveram médias que os colocam, entre 57 países, na 53ª posição em matemática, na 48ª em leitura e na 52ª em ciências.
Outra característica inovadora do Enem é a possibilidade de o candidato concorrer com a mesma prova em até cinco universidades federais. Um avanço que aumenta as chances de ingresso em instituições qualificadas e diminui o gasto com inscrições de vestibular e em deslocamento para realizar o exame.
"Democratiza o acesso ao ensino superior", diz Miguel Roberto Jorge, pró-reitor de graduação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que utilizará a avaliação como forma de ingresso único em 19 dos 26 cursos. A mineira Diana Salma, 31 anos, entrou na faculdade de medicina da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) em 2008 apenas com os resultados do Enem. "Por esse critério, fiquei em 14º lugar", comemora. Malvina Tuttman, reitora da UNIRIO, vê mais uma vantagem. "O exame incentivará a mobilidade estudantil pelo território nacional."




Mas nem todos os educadores estão otimistas com as mudanças. Os críticos dizem que estudantes do Sudeste que não alcançarem pontuação para estudar nas faculdades de seus Estados terão nota suficiente para cursar as instituições do Norte e Nordeste, tomando o lugar dos candidatos dessas regiões.
"Vamos provocar justiça social, ao permitir acesso a candidatos de várias partes do País, ou injustiça social, ao permitir que alunos locais sejam excluídos por pessoas que se preparam em colégios caros?", questiona Roberto Salles, reitor da Universidade Federal Fluminense.
A discussão retorna à necessidade de um investimento de impacto no ensino público para que a desigualdade social, ao invés de aumentar, ganhe menores proporções. O programa Ensino Médio Inovador é um caminho.
O projeto pretende mudar a organização curricular das escolas das redes estaduais. As 100 instituições que apresentarem até 24 de setembro propostas de inovação receberão financiamento do MEC. A intenção é estimular a diversificação de atividades integradoras, com ênfase na formação cultural do aluno.
Em três anos, o MEC espera que o Enem seja o principal processo de seleção de universidades públicas e privadas. "Todas as instituições vão perceber que esse é o melhor método", garante Maria Paula Dalari, secretária de Ensino Superior. Por enquanto, muitas acreditam que seu vestibular tradicional é eficiente.
"Consideramos o nosso sistema consolidado", diz Márcia Abrahão, decana de graduação da Universidade de Brasília (UnB), que usa o Programa de Avaliação Seriada, no qual, por meio de convênios com as escolas locais, acompanha o desempenho dos alunos a cada série do ensino médio desde 1995. "Nosso vestibular já privilegia argumentação, competências e habilidades", diz André Sarmantini, vice-coordenador de graduação da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.
"Mas, se o exame evoluir, podemos incorporá-lo." E a avaliação pode melhorar ainda mais. A ideia é que em 2010 a prova seja realizada em duas etapas, tomando novamente como exemplo o SAT americano, que acontece em sete fases. Não demandaria um imenso teste e os alunos se preparariam mais.
Caso a evolução do Enem se concretize, juntamente com as mudanças positivas prometidas para os ensinos fundamental e médio, a esperança é que em dez anos, cálculo dos especialistas ouvidos pela reportagem de ISTOÉ, a educação brasileira forme pessoas mais preparadas para a vida - e resulte em uma nação cada vez melhor.


"O ENEM VAI REORIENTAR O ENSINO"



O ministro da Educação, Fernando Haddad, falou à ISTOÉ sobre os reflexos do exame nas escolas.


ISTOÉ - Por que só agora, 11 anos após sua criação, o Enem chegou a esse novo formato?

Fernando Haddad -
O Enem, no seu formato original, falhou no seu principal propósito, que era acabar com o vestibular tradicional. As principais universidades não viam o Enem como um instrumento adequado para seus processos seletivos nem os secretários estaduais viam no exame o formato adequado para orientar o currículo do ensino médio. Daí a mudança foi necessária e, em minha opinião, recebeu apoio em função de ter sido um formato negociado, tanto com os secretários estaduais quanto com os reitores.

ISTOÉ - Algumas universidades, como o ITA, dizem que não vão aderir porque sua seleção dá certo. Em quanto tempo acredita que todas participarão?

Haddad
- Estamos prevendo para as universidades federais um processo de transição de três anos. Nesse primeiro ano, 50 instituições vão utilizar o Enem como fase única e 26 universidades públicas vão usá-lo como componente da nota. Compreendo que algumas instituições, por adotarem um processo seletivo adequado aos seus propósitos, não tenham a intenção, nesse momento, de fazer do Enem a base de seu processo seletivo.
"Hoje, em virtude do conteúdo excessivo, os professores têm pouca condição de aprofundar as disciplinas"

ISTOÉ - O sr. acredita que o conceito do novo Enem vai mudar o jeito de as escolas ensinarem?

Haddad -
Não tenho dúvida de que vai reorientar o ensino médio, fazendo com que diminua o conteúdo e permita o aprofundamento dos temas pertinentes a essa etapa de ensino. Hoje, em virtude do conteúdo excessivo, os professores têm pouca condição de aprofundar as disciplinas porque o currículo do ensino médio acabou se tornando uma espécie de sobreposição de programas de vestibular. É praticamente impossível não lançar mão de decorebas, fórmulas, etc., para dar conta da abrangência dos conteúdos que são cobrados nos milhares de vestibulares que ocorrem no País.

ISTOÉ - Quanto tempo a educação brasileira levará para mudar para melhor, graças ao novo conceito?

Haddad -
Minha expectativa é que o início da mudança ocorra a partir da adesão das universidades. Dependemos dessa adesão, para que o ensino médio consiga respirar aliviado, para cobrir um conteúdo mais inteligente, mais instigante. A velocidade da transição vai determinar a da mudança.
"Desde que as notas médias do Enem por escola foram divulgadas começou um movimento de adaptação".

ISTOÉ - Muitas escolas de elite que não se saíram bem na avaliação de 2007 subiram dezenas de posições em 2009. Como isso foi possível?

Haddad -
Na interlocução com diretores de escolas particulares e públicas, percebemos que, desde que as notas médias do Enem por escola foram divulgadas pela primeira vez, em 2006, começou um movimento de adaptação das instituições de ensino.

ISTOÉ - Os alunos de escolas públicas não continuam em desvantagem, já que o problema é a qualidade do ensino nessas instituições?

Haddad
- Em primeiro lugar, as escolas públicas têm um investimento por aluno equivalente a 10% do que se investe em média no estudante de escola privada. E recebem o aluno em condições socioeconômicas muito mais desfavoráveis. A família é um determinante da educação dos filhos. A distância existe, mas entendo que é superável. Fixamos metas até 2022 para que a escola pública se equipare em qualidade à escola particular - que atende apenas 12% da população.


Hugo Marques





Fonte: Revista Isto É



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