Filosofia

1001 razões para esquecer o dia 17 de Agosto de 2010

Querida Sofia,

Se há dias em que parece que Deus nos está a segurar a mão e tudo corre às mil maravilhas, há aqueles dias em que Ele esteve sem dúvida demasiado ocupado com um caso psicológico bem mais grave do que o meu.

Ultimamente, tenho dormido mal. Dizem que quanto mais desporto se faz, melhor se dorme, mas quanto mais frito os meus glúteos, menos durmo. Uma da manhã, procurei na caixa de farmácia que tenho os meus soníferos para ver se conseguia partir desta para melhor e acordar apenas lá para sábado. Nada. Não tinha nada na reserva, não tinha sequer um chazinho de camomila. Tinha-me a mim sem sono, o meu livro e a chuva. Pus em streaming um programa francês que apenas fez o tempo passar mas não trouxe o sono no bico. Desliguei o laptop. Abri o livro da Tatiana de Rosnay. Leio. Mas os olhos não se cansam. Apaguei a luz. Respirei fundo e disse-me: "é agora que dormes". Como o azar não faz as coisas pela metade, recebo um SMS de longe: "Elite estou nervoso, Elite isto, Elite aquilo, é mesmo aqui onde quero fazer a minha vida, estou a espera de resposta". Quis mata-lo. Algo em mim rompe-se a cada mensagem que nos enviamos. Nem um rompimento de hímen dói tanto. Respondi com um seco "good for you". Mentalmente, mandei-o para longe. Ainda mais longe do que já está e de onde parece que não vai regressar nunca. E foi isso mesmo que disse em voz alta. Não voltes, não me escrevas, não me telefones mais. Mas não sei se ouviu. Voltei aos meus botões. Sono? Que sono? A raiva que me invadiu tomou a melhor. Fiquei ainda mais desperta do que nunca. Fiquei com vontade de ir correr, mas HEY!, estava a chover. Que faço quando estou com insónia? Ou simplesmente entediada? Como. Mas ando numa dieta tão rígida que não quis sabotar tudo. E de qualquer maneira, sabotar com o quê? Na minha casa só há chá drenante e alface. Nada que me engorde a linha a não ser a minha impaciência. Em tempo normal, teria descido batata frita, pizza e gelado. Mas essas coisas, tal como Deus, fugiram da minha casa. Olho para o relógio: 6h da manha. Choro de raiva. Choro de fome. Choro de desespero e de solidão. Ponho o ultimo álbum dos Gotan Project a tocar no telefone e fecho os olhos. Lá fora, já é dia. Os pássaros irritantes, que não devem sofrer de insónia, já cantam feito parvos. Oiço o camião do lixo. Fecho os olhos definitivamente quando são 6h53. Não abro mais. Alias, abro. São 10h da manha. Chamada do estrangeiro. "Elite, atende, é urgente". Não atendi. Estava drogada de sono. Levantei-me, fui à cozinha de olhos fechados e pele inchada e peguei na primeira fatia de pão integral de centeio que me apareceu à frente. Pão integral de centeio! Olho para aquilo enquanto mastigo devagar. Estou a levar esta dieta mesmo muito a sério. Olho para trás e vejo que o meu rabo continua ali. Grande, majestoso, indestrutível. Então mais vale levar isto tudo mesmo a sério. Abro o laptop. Escrever. Trabalhar. Projecto que cresce. Hoje parece que não chove. Perdi a hora do almoço. Aterrei-me numa banana e fiquei a ver o tempo passar, com as letras que não se faziam escrever. Outra chamada. "Elite, atende. É importante". Não atendo. Olho para a elíptica e instalo o laptop nela. Deixo-me levar com um Top Chef e um Army Wives. Olho o meu reflexo no espelho enquanto treino. A minha silhueta em movimento faz-me vibrar. Sinto-me poderosa e vencedora. Olho para a minha cara. Olheiras até o chão. Quase duas horas naquilo e banho. Roupa, telefone, rua. Ando para a farmácia. Penso que vou demorar 5 minutos. Demoro 30. Olho para o chão impaciente. Não vejo como fazer o tempo passar. Sinto o telefone vibrar pois acabei de receber um mail. Ela estava há meia hora à minha espera do outro lado da cidade. Sofia, minha amiga, se estar sempre atrasado é falta de educação, não estar presente a um encontro e dar no-show é o quê? Quis fazer um buraco e enterrar-me. Revirei o Outlook para ver se estava apenas a sonhar e não vi encontro algum marcado. O cérebro num alfinete, foi a primeira coisa que achei do meu estado mental. Não sou de esquecer de apontar encontros. Liguei-lhe. Morri de vergonha, pedi milhares de desculpas. Ao desligar, a vontade de atirar-me a uma qualquer linha de metro era mais do que muita. Pelo menos dormiria, achei eu. Depois da mulher da minha frente fazer a farmacêutica procurar uma dezena de remédios, finalmente decidiu não comprar nada e foi embora. Minha vez. Pedi-lhe uma caixa de soníferos. Não, duas. Preciso de duas. Pago. Penso em voltar para casa e pôr os 20 comprimidos no sangue. Não quero morrer. Quero dormir. SMS a uma amiga. "Drinks, jantar, save me?" Encontramo-nos do lado oposto do rio. Restaurante. Peço um cocktail com vodka para ver se o dia é real. Ela pergunta-me se pode comer algo de calórico à minha frente, se não me importo. Respondo-lhe que ela pode comer o que quiser, até batata frita, porque vi que o restaurante tinha gazpacho e era tudo o que eu queria. A minha amiga é linda. Parece uma modelo. Traços finos, franja sublime num cabelo loiro recto, um sotaque estrangeiro fabuloso e um sorriso contagiante. Naquele restaurante só havia homens bonitos a servir. Avancei um pires a um. Ele não compreendeu. Era para a baba dele. Vodka no sangue. Com morango e menta e gelo. Gazpacho no estômago. Primeira verdadeira refeição do dia. Despejo as minhas mágoas. Ela despeja as dela. Que são maiores que as minhas. 22h, estou cansada. Não dormi, trabalhei, fiz exercício, doem-me as pernas. Começo a escrever o post no metro, com o telefone. Ao voltar para a casa, vejo a torre Eiffel brilhar. O dia não vai acabar mal. E tenho 2 soníferos na mão para descer pela goela abaixo que me vão ajudar.

Até amanhã.

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