Filosofia

A criança que atrai com a pele que repele

Querida Sofia,

Aconteceu hoje de manhã no autocarro. Sentei-me e abri o meu livro para ler durante os vinte minutos de trajecto que tinha pela frente. Mas não consegui concentrar-me: pela primeira vez em alguns dias, não estava a chover, o sol estava presente e as pessoas estavam a “acordar” pois eram apenas oito da manhã. Entrou uma mãe com o seu filho. Ele devia ter seis ou sete anos. Tinha um chapéu (do tipo boné), uma t-shirt branca e uns calções de ganga. Não me sinto naturalmente atraída por crianças, mas fixei-o sem querer. Ele tinha a cara cheia de manchas, cicatrizes, vermelhidões. Como eu.

Lembrei-me que de manhã, depois do banho, do cabelo lavado e rapidamente esticado, vestida, chegou aquele momento no qual tenho cinco a dez minutos pela frente para maquilhar-me depois de ter a cara lavada e preparada para tal. Não me apeteceu. Pus apenas protector solar e sorri para o espelho. Pronta para a vida, Elite?

Tinha olheiras. E tinha umas cinco borbulhas enormes. Mas na mesma, sorri, porque antes tinha de contar os espaços saudáveis da minha pele. Hoje posso contar borbulhas. Hoje estou com uma pele melhor e sinto menos vergonha de sair à rua sem grandes artifícios.

Olhei de novo para o menino e lembrei-me que há uns sete ou oito anos, estava na pele dele. Com a pele dele. E não me sabia maquilhar. Tinha a pele tão sensível que estava sempre vermelha. Cicatrizes e borbulhas e vermelhidões que não paravam. Que me envergonhavam. Que deviam dar imenso nojo a quem me cruzasse, supostamente. Tentei não fixa-lo por muito tempo. A mãe dele poderia tomar a minha fixação como algo que não era. Ele olhou para mim. Eu sorri. Ele também. Quis levantar-me e abraçá-lo. Sei que o caso dele é pior do que o meu. Ele nem sequer é adolescente. A pele dele é muito mais sensível do que a minha e a verdade, é que eu enquanto menina, posso maquilhar-me quando a quero esconder. Não estou a vê-lo ser maquilhado todas as manhãs pela mãe.

Não gosto muito de crianças. Mas o que senti por esta foi absolutamente inexplicável. Como se eu pudesse compreende-lo mais do que a mãe dele – que tinha a pele lisa lisinha enquanto eu, pelo menos, sempre vi a minha mãe atormentar-se com a pele dela também – e que ele pudesse me compreender mais do que qualquer pessoa que nunca tenha tido problemas de pele. Que não saiba o que é a necessidade de camuflar, esconder. E o quanto nos sentimos fortes quando assumimos sem vergonha. A verdade é que ele era mais corajoso do que eu. Eu escondo quando posso. Ele não pode.

Não ficou muito tempo no autocarro. A mãe dele pegou-o pela mão e saíram algumas paragens antes de mim. Aquele nosso encontro demorou cinco minutos. Ele já deve ter-se esquecido de mim. Eu não. No fundo, foram cinco minutos que me deram tanto que pensar. Foram cinco minutos que não teriam acontecido se tivesse os olhos postos no livro que tencionava naquele trajecto devorar.

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