Sou Africana e não como mandioca.
Filosofia

Sou Africana e não como mandioca.


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Querida Sofia,
Sou Africana e não como mandioca. Não nasci numa árvore. O meu animal de estimação nunca foi um tigre. Porque de uma vez por todas, as pessoas PRECISAM SABER, não há tigres em Africa. Não ia para a escola de jangada. O meu pai não é caçador. A minha mãe não batia funge no meio da aldeia. Nunca morei numa cubata. Não tenho os pés gastos por ter andado descalça. Não levo fios ao peito para contar há quantos anos eu estou na terra. Na escola, eu não sentava no chão. O meu caderno não era uma tábua. O meu lápis não era um pedaço de giz. Quando voltava da escola, o meu lanche não era carne da caça de um antilope. Não era fruto do sacrifício de um boi. Não estou familiarizada com leite azedo de cabra. Não cresci com trancinhas pequeninas com missangas a cair. Não adormeci ao som da fogueira. Não ouvi o meu avô, tal um soba, no meio do povo, a contar histórias de outro tempo. Não sei falar nenhuma língua nacional, nenhum dialecto. Não uso um boubou (vestido africano) no meu dia-a-dia. Nunca subi uma árvore para colher uma manga. Nunca me escondi na mata para fugir à tribo do reino vizinho e inimigo.
Sou Africana e não como mandioca. Aliás, como, mas não é todos os dias. Acontece quando vou a um restaurante brasileiro e tem mandioquinha frita que é uma delicia. Os meus amigos em Paris não são (todos) angolanos. Não sou "comunitarista". Quem entra na minha casa não sente cheiro de feijão de óleo de palma. Não há nunca água a ferver para bater a fuba. Não oiço Kizomba dia e noite. Não tenho saudades de casa ao ponto de não conseguir viver o dia a dia que me é destinado, aqui.
Mas há coisas que nunca vão mudar. Que eu não quero que mudem. Quando eu era pequena, lia o Mankiko. Não digo amendoins, digo ginguba. Não digo pralines, digo paracuca. Não digo frigorífico (apenas quando me forço) mas digo geleira. Não digo Angola, digo "a banda". Não digo os meus pais, digo "os kotas". Não digo curativo, digo curita. E digo zwela, kandandu, desconseguir, maka, malaike, sei o que é o processo 500, malé malé, sebém, a Camanga, a Kassumuna quis me morder mas eu não deixei, mwadié, vamos kizombar, aquela passada, aquela tarrachinha, e tantos outros termos que são nossos e apenas nossos, e que eu nunca hei de largar.
Sou Africana e não como mandioca. A isto não se chama ser complexada. Não me sinto superior a nenhum Africano nem a nenhum Europeu. Não estou na terra para pisar quem quer que seja. Não sou uma santa, sou até uma gaja cheiinha de defeitos e infantilidades inerentes aos meus 23 anos. Não penso que sou branca, não desejo secretamente ver a minha pele mais clara, nem sinto complexo algum em ter a pele morena, bronzeada, queimada, mestiça o ano inteiro, até no inverno. Não como mandioca e não é acto de rejeição da minha cultura. Ser Africana não é viver essencialmente comendo mandioca e contando piolhos na cabeça da irmã mais nova. Não é viver todos os dias com uma cultura que mesmo em Angola, eu não tive no quotidiano (mas pensando no assunto, entrava gimboa* em casa todos os dias quando eu lá morava). Apenas tenho o "azar" de não ser uma saudosista meia tigela porque não me serve de nada. Não peço perdão a ninguém por ter (tido) privilégios. Não peço perdão a ninguém por ser um melting pot de quatro ou cinco culturas ao mesmo tempo, fruto das viagens dos meus pais. Não peço desculpa porque é o que eu sou e não posso nem quero mudar isso. Sou Angolana mas não sou apenas Angolana. Sou mais do que uma nacionalidade e do que uma cor de pele. Não me sinto superior a ninguém, nem inferior. Não combina comigo. E não condeno a quem combine melhor. Não estou em Paris para fazer um Erasmus de seis meses, estou aqui para a vida e pela vida. Não gasto o dinheiro do contribuinte (?) angolano. A comida que está no meu prato não vem de uma ajuda comunitária deturpada. E sei que seria mais fácil acreditar no contrário de qualquer outra frase aqui acima descrita. Então aconselho realmente a acreditares no que quiseres. No que te reconforta mais. Porque sei que incomoda muito saber - por vezes - que até uma Africana tem tanto direito à cultura, às viagens, ao requinte como qualquer outro cidadão deste país, deste continente, deste mundo. Mas se te incomoda a ti, quero que saibas que tudo isto que vivo e que sou, se não me fizer 100% feliz, faz-me sentir completa. Gosto de saber que não sou unilateral. Gosto de ser esta pessoa sem nação, que não nasceu no bairro onde vive e onde vai morrer (well, isto não posso realmente saber). Gosto de saber que não choro todos os dias por estar longe de casa. Gosto de saber, no fundo, que nem sei onde realmente é a minha casa. Gosto de misturar linguas na minha cabeça para dizer uma simples frase às minhas irmãs. Um tal de "eu gosto muito de banana because n'a pas de caroço e descasca-se very well" que é totalmente a minha cara.
E gosto disso. De ser fiel a esta pessoa tão tudo e tão nada que eu sou. Mesmo que seja preciso repetir isto, pelo menos uma vez por trimestre, tal uma vacina contra qualquer doença, que no fundo, não tem cura.
*folha parecida com rúcula ou espinafre
Título do post inspirado do livro de Gaston Kelman "Je suis noir et je n'aime pas le manioc"



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