Hopes and expectations, black holes and revelations*
Filosofia

Hopes and expectations, black holes and revelations*


Photobucket
Antwerpen, Agosto 2009
*
Querida Sofia,
Há algumas semanas atrás, a minha mãe ligou-me. Disse-me depois de alguns minutos de "conversa" (ou monólogo, consoante o ponto de vista) que eu estava com a voz em baixo e de poucas palavras. Respondi-lhe, sem adiantar grande coisa, que estava com alguns problemas. Ao que ela lançou-me uma das suas frases preferidas "desde quando tu tens problemas? aos 23 anos ninguém tem problemas, muito menos tu". Esqueci-me - claramente - que aos 23 anos, ninguém tem problemas. Eu e a minha perfeita vida não temos razões de queixa, problema algum e razão alguma para ter uma ruga ou mesmo verter uma lágrima nesta cara.
No entanto...
Olho para colegas, e pergunto-me se poderiam ter saído de casa aos 14 anos, para um país que não conheciam, e continuado de pé, certinhas nos estudos, encontrado o seu trabalho sozinhas, sem nunca se meter em drogas nem mesmo em cigarros, não tendo filhos escondidos.
Olho para as pessoas na rua e pergunto-me se já ficaram dois anos das suas vidas sem ver as suas mães ao ponto de, quando finalmente se reencontram, já nem se reconhecem.
Olho para o vizinho que leva os filhos todas as manhãs à escola e pergunto-me se um dia, ele vai dizer à filha de nove anos "se estiveres doente, vais ao hospital sozinha".
Olho para a menina de caixa do supermercado e pergunto-me se aos 15 anos ela já tinha procurado casa sozinha, sem ajuda de ninguém.
Olho para a minha chefe e pergunto-me se ela já ficou algum dia da sua vida numa fila de sete horas de espera para ter um visto e ter visto o pedido recusado.
Olho à minha volta e pergunto-me se realmente alguém consegue ter a perspectiva de passar o Natal sem família e não morrer por isso.
Olho para aquela moça alta e magra que eu conheço e pergunto-me se alguma vez soube o que é ir a uma loja e não encontrar número de roupa por vestir, por tudo ser tão pequeno, numa sociedade em que ser gordo é (quase um) crime.
Pergunto-me isto tudo todos os dias.
Todos os dias, acordo a perguntar-me se alguém, se outra pessoa na terra além de mim, teve exactamente a mesma vida que eu. Sei que sim. E sei que há os que tiveram a vida mais facilitada do que eu. E sei que ao mesmo tempo, sou uma privilegiada por tantas outras coisas. Porque o que tu tens na tua vida, eu não tenho nem posso ter. Porque o que eu tenho na minha vida que tu queres alcançar e não consegues, não podes ter. E a vida vai ser sempre assim. Vamos sempre querer algo que não podemos obter.
E o mal disso tudo, é que batalhando, podemos conquistar mundos e fundos.
E o mal disso tudo, é que mesmo que eu batalhe, não vou voltar a ter 14 anos e ter a oportunidade de ficar em casa, com uma estrutura familiar coerente.
Por mais que eu lute, não vou ter companhia para ir ao hospital e ter alguém que me segure a mão.
Por mais que eu lute, não posso preencher o vazio que é de crescer com os pais à distância de um telefone ou de uma conversa MSN.
Por mais que eu lute, eu nunca terei tido os meus pais à irem buscar-me à escola no dia a dia, a ajudar-me com deveres e com direito a um "beijinho grande" antes de ir para a cama.
Por mais que eu lute, eu terei de continuar a fazer filas intermináveis nas prefeituras do país no qual escolhi viver para ter o direito de aqui viver.
Por mais que eu lute, o Natal vai ser sempre um assunto sensivel para mim, e assim que as pessoas, em Novembro comecam a falar de prendas e árvores e presépios, eu vou odiá-las.
Por mais que eu lute e por mais vestidos que compre, eu não posso sair de casa mostrando a minha verdadeira pele que infelizmente, não é de bébé mas é um terreno lunar, cheio de crateras e vermelhidões que me envergonham.
Por mais que eu lute, não consigo deixar de invejar os casais que passeam por aqui e por ali de mãos dadas ao seu filho.
Olho à minha volta e vejo que realmente, eu não tenho problemas.
Porque no fundo, tudo o que aqui retratei, não posso voltar atrás, não posso recomeçar, não posso apagar. Aprendi a lidar com isso num silêncio pesante, escondido, que sempre calei e que do qual (quase) nunca me queixo. Nunca me queixei e nunca pedi uma outra vida porque era esta que me era destinada.
Mas por um dia, um só dia, gostaria que parassem de me ver como uma pessoa forte, e que aceitassem que eu possa estar triste, e que eu também tenho o direito de ter problemas. Não são os mesmos que os teus, mas eu também os tenho. São os meus e afectam-me tanto quanto os teus te afectam a ti. Gostaria, nem que fosse por um segundo, que alguém me pegasse ao colo, me ajudasse com os deveres, e que aceitasse que eu também tenho direito de ter aos 23 anos a vida de uma pessoa de 23 anos. E no fundo, mesmo com estes vazios todos que nada nem ninguém podem sarar, eu continuo a viver a minha vida. Sem reclamar por tudo e por nada como se o Estado da Nação é que mandasse no meu quotidiano.
A minha vida, tal como Deus me deu vivê-la, com as suas esperanças derrotadas, expectativas recriadas, buracos negros tapados e todo o resto, é perfeita... é perfeita e que fique mais que garantido - sobretudo para a minha mãe - que eu realmente não tenho problemas.

*lyric from "Starlight" by Muse.



loading...

- Elite, 10 Brothers And Sisters, But As Lonely As Lonely Can Get
Querida Sofia,  Dizem que na vida, quando acaba um problema, começa outro, assim como o acne na (minha) cara ou os cogumelos da floresta. No fundo, se as coisas fossem exactamente assim, a minha vida seria mais fácil. Sinto que neste momento –...

- Sete Para Onze
Querida Sofia, Para este ano, quero ter resoluções. Quero cumpri-las e abandona-las como todos os anos e saber que posso, por exemplo, recomeçar tudo num dia 4 de Abril ou 29 de Julho como se fosse realmente o primeiro dia do ano. Mas quero resoluções...

- There Are The Same Letters In "listen" And "silent" But I Still Prefer The Latter
Querida Sofia, A velhice não me tem trazido rugas mas tem-me dado hábitos que não consigo largar. Ou que pelo menos, passei a descobrir e aceitar. Há pessoas que precisam ir correr todas as manhãs (tenho muita inveja da minha amiga J., que se...

- I Don't Have A Dream. I Have A Project.
Querida Sofia,Acho que este ano, a contar de Agosto 2009, ensinou-me realmente o que é a vida. Assim, tal como sempre foi para mim e como parece que vai continuar a ser. Aprendi que podes deixar de ter um óptimo trabalho, que podes ver a pessoa que...

- 22 Going 23
Querida Sofia, Dentro de alguns dias farei 23 anos. Dou-me conta que (ainda) não tenho medo de envelhecer. Sinto pessoalmente que não poderia ter feito mais dos meus primeiros 22 anos. Não plantei uma árvore, mas plantei alguns pés de feijão. Não...



Filosofia








.