Onde estavas no dia 10 de Agosto de 2001, Elite?
Filosofia

Onde estavas no dia 10 de Agosto de 2001, Elite?


Ao princípio da tarde de 10 de Agosto de 2001 o comboio que fazia a ligação entre Luanda e Dondo, na província do Kwanza Norte, accionou uma mina nos arredores da localidade de Zenza do Itombe, o que provocou o seu descarrilamento parcial e o incêndio do combustível que transportava.
Segundo testemunhos de sobreviventes, imediatamente depois da imobilização do comboio, surgiu um grupo de homens armados que disparou indiscriminadamente sobre os passageiros.
O último balanço oficial refere a existência de 260 mortos e mais de uma centena e meia de feridos, mas admite-se que o número real de vítimas possa ser superior devido ao facto de, pelo menos, uma das carruagens ter ficado totalmente carbonizada com a maior parte dos passageiros no interior". (retirado da internet)

Querida Sofia,
Aquando deste massacre, ainda morava em Luanda. Aconteceu a poucos quilómetros de mim, da minha casa, da cidade onde morava. Nunca vi, na minha vida, uma foto deste massacre. Lembro-me de passar horas a fio com a minha mãe a ouvir a Rádio Ecclesia, a emissora católica de Angola, para sabermos o que estava a acontecer e o avançar da situação.
Não tenho memória do que fiz nesse dia. Não tinha blog nem diário na altura. Não sei sequer como soube do assunto. Seguramente ouvindo a rádio. Nem me lembrava da data sequer, a minha irmã é que teve de me relembrar ontem.
No entanto, sei o que aconteceu exactamente um mês depois, no dia 11 de Setembro. Lembro-me que ainda estava em Luanda à espera do meu visto para poder vir estudar em França. Lembro-me do meu pai a ver a CNN. Eu estava no meu quarto e chamou-me para ver a primeira torre a arder. Ainda estávamos nesse ponto do dia. Uma das torres. A arder. Depois foi o que se sabe.
Lembro-me que a minha mãe estava a descansar no quarto. Quando a segunda torre foi atingida, levantei-me e fui bater à porta dela. Acordei a minha mãe com um “Mãe, atacaram torres em Nova Iorque, estão a arder”. Ela ficou furiosa. Em geral, ela já detesta(va) ser acordada precipitadamente e disse-me algo como “nunca me acordaste por causa de um massacre aqui em Angola então não me chateies”. Saí do quarto. Ela estava de mau humor. Sei que depois, quando acordou, vimos as notícias juntas e acho que nem se deve lembrar do que me disse quando quis acordá-la à força. Mas porra, eu tinha 14 anos, estava impressionada e queria que a minha mãe ficasse chocada também. Comigo. Voltei para a sala e o meu pai estava ao telefone com um amigo: “Estás a ver essa desgraça, pá? Deve ter sido a UNITA a mandar fazer aquela merda em Nova Iorque”. Pardon my french, mas o meu pai fala(va) mesmo assim. E, se bem nos lembrarmos, todo o mundo especulou a sua versão sobre quem eram os terroristas antes de ouvirmos falar de Bin Laden’s e companhia.

O que mais me irrita é eu lembrar-me perfeitamente do meu dia 11 de Setembro de 2001 e não me lembrar de todo o meu dia 10 de Agosto do mesmo ano. Na época, era nova demais para me importar, mas hoje dou-me conta do quanto somos de certa forma abertamente manipulados pelos media. Nunca vi uma imagem do Zenza do Itombe. Não está gravado na minha memória. O medo que a UNITA atacasse Luanda – medo que todos por lá tivemos – caiu no meu esquecimento. Por vezes tenho atitudes de gente que não viveu num país em guerra. Creio ter posto tudo numa gaveta e esquecido.
No entanto, já vi tudo quanto é imagem, documentário ou filme sobre o 11 de Setembro. Não perdi ninguém naqueles ataques. Nenhum membro da minha família foi para a guerra do Afeganistão de seguida. Nunca tinha estado nos Estados-Unidos antes. No fundo, não tinha nada a ver com o assunto. O que esqueço é que mesmo que queira negar, esse dia fez com que as coisas à minha volta mudassem. E o que mudou transcendeu à minha vida de todos os dias. O meu processo de visto para França foi trancado porque todos os consulados fecharam por questões de segurança.
Quando cheguei a França, 10 dias depois dos ataques, o nível de segurança no aeroporto era algo assustador, no qual éramos todos potencialmente perigosos assim que puséssemos o rabo num avião. Descobri meses depois a razão para não haver mais caixotes do lixo nas ruas de Montpellier, mas apenas sacos transparentes para podermos ver de fora se há uma bomba lá dentro ou não. E hoje em dia, quando tens um nome à consonância árabe, és forçosamente um terrorista.
Ontem, cometi o erro de generalizar e critiquei abertamente na minha página do Facebook e aqui sob forma de certezinha o facto de as pessoas dizerem que o 11 de Setembro de 2001 mudou as suas vidas para sempre. Foi uma declaração infeliz, insensível e sem semblante de explicação. Mas foi o que eu disse e tenho as minhas razões.
Para mim, estes ataques são um assunto, ANTES DE MAIS NADA, americano. É uma ferida americana. É uma dor americana. É uma perda americana. Aconteceu no país deles, e milhares de pessoas inocentes morreram. As consequências destes ataques são, em contrapartida, mundiais. Não há como negar nem tapar o sol com a peneira, é verdade. As imagens não ficaram apenas nos EUA. As imagens foram transmitidas em directo para o mundo inteiro. Nós, nos nossos sofazinhos, ou onde quer que fosse que estivéssemos naquele dia, estávamos no “nosso” conforto a ver gente a ser morta. Em directo. Sem cortes. Sem pudores. A ver as pessoas a atirarem-se de cada andar. Aquele sofrimento agoniante. Aquelas torres feitas contra ataques de aviões a caírem como castelos de cartas frágeis. De seguida, não foram apenas os Americanos a ir para o Afeganistão. O número de países e soldados envolvidos nessa guerra ultrapassou a questão americana. Não posso esquecer isso. Não devo esquecer isso. Não posso ser indiferente e insensível quanto a isso.

O que mais me irrita, no fundo, não é apenas o facto de as pessoas (não americanas, sem família ou vínculos nos USA, sem família ou vínculos com os soldados, sem ligação alguma com NY) assumirem que as suas vidas mudaram nesse dia enquanto, ao colocares a questão “mas o que mudou REALMENTE na tua vida?”, não terem argumentos a não ser “epa, aquilo não era um filme, era muito real, sabes?”. Como obtive respostas geralmente vácuas a este tipo de perguntas, assumo (o que é errado), que se não aconteceu no teu país, ninguém da tua família morreu, nunca puseste um pé em NY, ninguém dos teus foi à guerra para combater quem cometeu o acto, não tens um nome árabe que te tenha feito passar a ser discriminado/a por isso, a tua vida não mudou uma porra. O que é errado, porque os reféns da casa do embaixador japonês em Lima, no Peru, o acidente do Kursk, os atentados de Beslan (podemos continuar esta lista até o fim do ano) marcaram-me profundamente e não mudaram uma palha na minha vida.

Passei o Natal 2003 em Madrid. Menos de 90 dias depois, aconteceram os ataques na capital espanhola. Chorei como uma desalmada. Um “podia ser eu”, “ainda no outro dia, eu estava ali” que me apoquentava. Abalou-me profundamente apesar de ninguém – thank God – da minha família ter morrido. Então eu própria sei que erro ao assumir o que quer que seja dos sentimentos dos outros perante estes acontecimentos. Vou tentar melhorar e mudar isso.

O que me irrita é que outros eventos não ganhem nunca importância aos olhos do mundo. O meio milhão de pessoas que morreu em Angola em 40 anos de guerra nunca vai ter o mesmo peso do que qualquer outro evento internacional, quer este tenha menos vítimas, o mesmo número de vítimas ou mais vítimas. Aqui não há bandeiras de “o meu problema é maior que o teu”, “o meu país é mais importante que o teu”. É apenas uma questão de voz e quando penso no assunto, não me conformo com o facto de o meu país não ser considerado no mundo. O massacre do Zenza, quando mediaticamente comparado a um massacre mais exposto na cena internacional, tem um sabor de “não aconteceu”, não foi importante, o que é absolutamente inadmissível para a Angolana que sou.

Lembro-me que quando morava em Angola, pediram-nos para fazer um minuto de silêncio por Timor. Muitos angolanos recusaram o gesto. A razão era, em geral “ninguém no mundo fez/faz um minuto de silêncio pelos Angolanos então não tenho de fazer por ninguém”.
Are they to blame? Sabia que aquela guerra não era a minha e fiz o meu minuto de silêncio. Hoje, apesar de não compactuar com isso, compreendo a reacção dos que não o fizeram.
No geral, um Angolano DE VERDADE não é mesquinho e chora contigo se alguém da tua família morre. Mesmo que a família dele INTEIRA tenha morrido também. A tua dor não anula a dele. A dor dele não anula a tua.

Mas nós ANGOLANOS somos os eternos esquecidos, isso também é outra verdade. Lembro-me de estar com a minha família no final do ano de 2002 em Roma e estar a ver a retrospectiva do ano da RTP internacional. A guerra de 40 anos em Angola tinha acabado em Fevereiro. A RTP não mencionou (ou mencionou e disseram apenas uma frase?) o fim da guerra em Angola. Lembro-me da indignação da minha família. Não tinha ligado à revolta deles na época. Se acontecesse hoje, seria outra coisa. Seria um valente “Putting it all out” aqui no CAFS.

Vi recentemente, num programa americano, um pai com os seus filhos pequenos a plantar bandeiras americanas na sua front lawn num 11 de Setembro. Ele queria que os filhos se lembrassem sempre desse dia e reiterar o seu amor pelo seu país. Senti-me tão tocada com aquele gesto. Não é diferente nem menos legitimo que a anual coroa de flores na tumba do soldado desconhecido aquando do armistício da grande guerra aqui em França. Temos um dever de memória para com acontecimentos que nos atinjam a nós, à nossa família ou em valores nos quais acreditamos. Se eu não tivesse um minuto especial, a cada 10 de Agosto, para pensar nas vítimas do Zenza, a culpa seria apenas minha. É apenas minha. Não “apenas” dos media.

Como disseram num debate no FB, “[O Nine Eleven] foi uma tragédia que continua a ser relembrada não necessariamente porque as pessoas estão sensibilizadas com a perda humana mas sim com a situação politico-económico-social das grandes potencias para justificar algumas das acções que seguiram”.

O que quis com isto tudo sublinhar é que não nos lembramos apenas do que queremos. Por vezes deixamo-nos influenciar por um grupo de pessoas que preconcebe o que deve chocar e o que deve agradar às massas, por aquilo que consideram certo ou errado.

Para resumir, esta situação toda é como a síndrome da Missing White Woman. Quando uma menina pequenina, rica, magrinha, fofinha e loira, desaparece, o mundo revira-se para procura-la e a exposição mediática no âmbito de recupera-la sã e salva é importante. Quando a criança é gordinha, negra ou árabe, de família pobre, o mundo está-se pouco lixando e o tempo de antena é menor se existente.

Sinto que Angola (e outros países) são como as crianças pobres que desaparecem. Uma mera estatística. Os outros, ocidentais, são mais importantes. E no fundo, é isso que me irrita. E as vítimas e famílias de vítimas do Nine Eleven não têm nada a ver com isso, não têm culpa dos outros não terem voz nem pediram a ninguém para estar nos media pelas piores razões possíveis.



loading...

- This Love. This Love Is A Strange Love.
Source Querida Sofia,  A última vez que vi a minha mãe foi quando esta me visitou foi em meados de 2009. Ao fim de um mês, desentendemo-nos e ela disse-me, no táxi de volta para o aeroporto “um dia vais caír, vais deixar de ser arrogante...

- Je Vais Bien, Ne T'en Fais Pas*
Querida Sofia... Que saudades tinha eu de ti, Sofia. Transformei-me num daqueles pais que passa mais tempo a viajar do que com os filhos e desisti de prometer que ia voltar brevemente ou que não iria embora tão rapidamente. Pode ser que volte amanhã,...

- Duzentas E Vinte Certezinhas
Chegou aquele dia do ano durante o qual as pessoas dizem que este dia mudou as suas vidas e vou irritar-me. Acontece todos os anos há nove anos. Adenda > estou a falar do extremo por muitos pensarem que este foi o "único" ou "pior" dia no mundo no qual...

- A Culpa é Daquela Gaja
Querida Sofia,O meu irmão mais novo nasceu quando morávamos em Lisboa. O meu pai tinha dado de frosques há meses, e como fez com cada filho que lhe nasceu, aparecia apenas quando a criança já andava. A minha mãe tinha pedido à melhor amiga da época...

- O Que Eu Não Tenho De Ouvir Por Ser Angolana Em França...
Querida Sofia, Aqui deixo uma sinopse de perguntas feitas à minha pessoa, recentemente ou não, na vida real, no blog ou por e-mail. Algumas difíceis de serem respondidas, mas as vezes… é preciso… Porque estudas fora do teu país ? Em Angola,...



Filosofia








.