Então é isto o que chamam de amizade. Não é apenas pegar no telemóvel, ligar para uma amiga e tauas, falar mal dos outros, rir desalmadamente, sentir-se mesmo mal, prometer nunca mais repetir a dose, e um mês depois, recomeçar. Não é apenas partilhar pipocas no cinema, ver o primeiro beijo da outra pela janela, apertar no “I like this” do Facebook para cada foto que qualquer amigo descarregue.
Então é isto o que chamam de amizade. Quando a minha amiga S. ligou de Montpellier a dizer que a mãe do Bruno morreu. Quem é o Bruno, perguntas-me tu? O Bruno foi o primeiro amigo que fiz na faculdade. Não que eu fosse tímida, mas sempre tive a mania de ser arrogante, e não precisava de (mais) amigos. O Bruno é de Hong-Kong então fazia parte do grupo de dois craques a inglês na nossa turma. Eu e ele. O Bruno é metade asiático, metade europeu, e nunca hesitou em chamar-me de irmã. Em fazer trabalhos de grupo comigo. Quando senti que ele estava a gostar da S. e a S. dele, lutei para que ficassem juntos como se da minha própria vida se tratasse. Hoje já la vão cinco anos.
Então é isto o que chamam de amizade. Quando a minha amiga S. ligou de Montpellier cinco vezes de seguida esta noite, não atendi porque tenho a (outra) mania de deixar o telemóvel sempre no silêncio enquanto trabalho, senti que algo de errado tinha acontecido. Que ninguém liga para ninguém cinco vezes de seguida, naquela insistência, sem deixar mensagem, se não for para dar uma má notícia.
Então é isto o que chamam de amizade. Quando a S. disse-me “a mãe do Bruno faleceu ontem, Elite”, comecei logo a chorar. Nem fui recatada. Foi mesmo aquele choro de baba e ranho. Porque ele tinha largado tudo para cuidar da mãe com Parkinson e do pai cego. Porque ele acordava todas as horas da madrugada para ajudar a mãe, que não tinha forças nem para andar ou ir à casa de banho sozinha. Porque ele passou os últimos três meses a ser a sombra dos pais, sempre presente para ajudar, por tantos tudos e tantos nadas. E porque quando a mãe caiu, não fez barulho, ele não ouviu, ela faleceu, e ele sentir, sem razão óbvia para tal, a maior culpa do mundo, eu querer chorar ainda mais.
Então é isto o que chamam de amizade. Quero apanhar o avião (nuvem, vai pastar) ou o comboio (greve da SNCF, vai pastar), e ir ter com ele. Quero ir o mais rápido possível. Mesmo que ele diga “não te preocupes comigo”, eu sou assim. Quando dizem socorro, eu estupidamente vou. E neste caso nem vai ser tão estúpido assim.
Agora é esperar que a família chegue de Hong-Kong e que os amigos desçam de Paris. Que estejamos todos juntos nem que eu chore mais do que ele à frente dele. Porque então é isto o que chamam de amizade.
Demain, dès l'aube, à l'heure où blanchit la campagne,
Je partirai. Vois-tu, je sais que tu m'attends.
J'irai par la forêt, j'irai par la montagne.
Je ne puis demeurer loin de toi plus longtemps.
Je marcherai les yeux fixés sur mes pensées,
Sans rien voir au dehors, sans entendre aucun bruit,
Seul, inconnu, le dos courbé, les mains croisées,
Triste, et le jour pour moi sera comme la nuit.
Je ne regarderai ni l'or du soir qui tombe,
Ni les voiles au loin descendant vers Harfleur,
Et quand j'arriverai, je mettrai sur ta tombe
Un bouquet de houx vert et de bruyère en fleur.
Victor Hugo