Então, se comeste bolachas francesas quando eras pequena, és fútil e privilegiada, pronto.
Filosofia

Então, se comeste bolachas francesas quando eras pequena, és fútil e privilegiada, pronto.


Querida Sofia, 
Sei que isto vai parecer uma continuação desta carta, mas não é de propósito. Aconteceu hoje, na hora do almoço. Tinha um almoço marcado com um amigo, mas desmarcamos para quarta-feira. Consequentemente, “tinha” de ir almoçar com a txurma do open-space. Sou ligeiramente anti-social no trabalho, não gosto de falar muito da minha vida pessoal e, sinceramente, só há duas ou três pessoas com quem eu lidaria se não fosse obrigada (e não as dez ou quinze matracas à minha volta)(não quero ser mázinha, mas há pessoas que têm mais aversão ao silêncio do que outras)(e em open-space, isso é dificil)(okay, chega de parênteses). Quando vão ao café, vão TODAS juntas, eu sempre recuso, porque prefiro os quinze (trinta) minutos de paz que me dão a ir falar do meu fim-de-semana com gente a quem não quero perguntar “e tu, o teu fim-de-semana?”... argh, I don’t care!

Então, como sei que é necessário relacionar-se um mínimo com os seus colegas, almoço com elas 3 a 4 vezes por semana. Como lentamente – eu, que como tão rápido em tempo normal -, para não ter de olhar para os olhos de ninguém, porque fico apenas a sonhar o quanto gostaria de estar no meu telefone, a twittar ou a responder a mails... (espero ter demonstrado, em poucas linhas, o quanto sou azeda na vida real...).
foto da internet

Como dizia, hoje respirei fundo, e quando disseram “Elite, comes connosco?”, esbocei o meu maior sorriso (amarelo?), e disse que sim, e lá fui alegremente (aos saltinhos e com trancinhas e missangas a cair, uelele...). Conheci uma senhora, que estava à nossa mesa, que tinha um trabalho apaixonante há alguns anos, quando os headquarters do cálcio tinham uma marca chamada LU: ela era chefe de produto de uma famosa bolacha, muito popular aqui em França (que é(era?), por acaso, a bolacha preferida do meu falecido). Fiquei tão feliz de estar naquela mesa, que meia-hora no twitter não poderia (a)pagar aquilo: ela falou-nos – com bastante entuasiasmo - do processo de fabricação, da receita secreta, das mudanças graduais na fórmula da tal bolacha, e que não gostava de bolachas antes de lá trabalhar e agora até as esconde dos filhos para poder comer à vontade quando chega a casa à noite. E foi então que a conversa azedou. Mas azedou apenas para mim: cada pessoa à mesa começou a falar das bolachas da sua infância. Aquelas que comiam em casa, na escola, aos lanches. Os Franceses são GRANDES consumidores de bolachas, e acho que vi ali 15 ou 20 nomes de bolachas infantis passarem à frente do meu nariz em dez segundos. Senti-me completamente deslocada, como se me tivessem feito cair de para-quedas no lugar errado, à hora errada: nunca na minha infância, consumi essas bolachas tão famosas aqui. O objectivo primeiro dos meus pais, quando eramos pequenos, era de nos alimentar apesar das carências que tinhamos na época – que, fala sério, são a nossa maior riqueza no crescimento pessoal –, e isso foi muito à base de papa de milho (fuba, água, açúcar nos bons dias), batata doce pisada (a mais barata), peixe grelhado pisado (porque peixe não era caro, na época, lá na banda). A Cerelac e o Nestum, não sei bem quando chegaram à nossa casa, mas já era um produto de luxo. Lembro-me, durante uns tempos, de ser obcecada por leite em pó (Nido da lata, gente), batido com pouca água e muito açúcar. Ai meu Deus, tão bom. Okay, estou a divagar. Isto são coisas que apenas quem cresceu em Angola pode compreender. 
Na escola, sempre vi os meninos franceses com as bolachas das quais falaram as minhas colegas ao almoço, mas às quais EU não tinha acesso. 1/Porque era caro demais em Angola 2/porque apenas se vendiam nos supermercados dos Franceses 3/porque nós, enquanto Angolanos – não sei bem qual era a política, se alguém souber, que me explique – não tinhamos acesso aos supermercados dos Franceses no nosso próprio país. Aquilo era como uma embaixada, era o território DELES fora do país. Então, no meu lanche, ia sumo de fruta Ceres ou Bonita (marcas sul-africanas, right? E isso já era luxo, senão levava masé água) e sandes de pão (carcaça), com manteiga (fiambre e queijo, no início do mês), se levasse. E os Franceses, que levavam eles?... aquelas bolachas lindas, cheias de bonequinhos, com chocolate, dentro, fora, ao lado, eles lambuzavam-se com aquilo, e eu muito os invejava. Lembro-me que um dia, tentei trocar com uma menina a minha carcaça amassada por um pacote de bolachas daquelas. Devo ter recebido o meu primeiro olhar à francesa: aquele olhar que mistura arrogância, pedantismo e nojo. Um must do olhar 43, aquele que mata num micro-segundo.
http://www.flickr.com/photos/jdoliver/4878743211/
Porra, o almoço fez-me lembrar disso tudo. Do que os outros tinham, do que eu não tinha, e da injustiça que eu achava que aquela merda situação era. Okay, não pensava assim quando era pequena. Na volta, dizia-me “também quero”, mas não havia inveja no meu coração, que era puro. A inveja existe hoje, quando analiso como poderia me sentir na época. 
Voltando ao presente, a verdade é que fiquei calada durante essa conversa. Quando riam e lembravam nomes de bolachas, eu olhava para o lado e até, a um momento dado, peguei no meu telefone para responder a um mail que tinha acabado de chegar (que falta de educação, Elite), mas a verdade é que não aguentei, naquele momento, tudo o que aquilo me fazia sentir. De novo, tive a confirmação que nem todos tivemos ou temos a mesma vida, as mesmas experiências, os mesmos privilégios, e a vida é MESMO ASSIM. Quem sabe, essas pessoas que consumiam essas bolachas tão kutxi kutxi, hoje não têm um diploma, ou são infelizes, ou têm mais problemas do que eu, ou eu sei lá? Pouco me importa. Subi sozinha para o meu open-space vazio enquanto elas foram tomar um café – e continuar aquela conversa insípida e fútil, aos meus olhos, sobre bolachas – e respirei fundo – de novo – e dei-me conta o quanto eu tinha sido desagradável. No fundo, se elas fossem blogs, eu teria sido uma troll. E eu não sou assim, nem quero ser assim amargurada. E quem sabe, esta semana, quando for comprar algo ao supermercado (dos Franceses, ao qual tenho acesso hoje em dia, youhou!), vou olhar para essas bolachas, que me foram inacessíveis durante mais de dez anos, e sorrir ao ver uma criança escolhê-las. Mas vou olhar apenas de lado, porque não sei se é trauma se é quê, em dez anos a morar em França, nunca as comprei e acho que nunca as comprarei, porque apesar de me serem hoje acessíveis, têm um sabor a “it’s too late”.




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