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Filosofia
O homem Judeu e eu
Querida Sofia,
Estava a andar com uma amiga numa rua tranquila, residencial e requintada no VI arrondissement. Vi ao longe um homem bem parecido com uma Quipá (Kipa) e óculos escuros, que se mantinha de pé contra a porta do seu prédio, o ar preocupado. Quanto mais nos aproximávamos, mais ele olhava para nós de maneira insistente. Eu estava com um guarda-chuva aberto para mim (hey, não vamos falar das acções nefastas de uns meros pinguitos de um estúpido chuvisco num cabelo recentemente desfrisado!) e a minha amiga estava ao meu lado, a andar fora da área do guarda-chuva. O homem continuava a olhar para nós. Quando cruzamos com ele – eu sabia! -, ele parou-nos educadamente, tirando os óculos escuros. A minha amiga estava do seu lado então foi com ela que começou a falar, enquanto eu continuava ali à “chuva”.
“Desculpem, o meu pedido pode parecer estranho, mas estou a fazer Sabat (Shabbat) e não posso tocar no meu interphone para abrir a porta, poderia ditar-lhe o número para poder entrar? Compreende o que lhe estou a dizer?”
A minha amiga olhou para ele com certo desdém e quase com um: “está a gozar comigo? Deixe-se de mariquices e abra a droga da porta sozinho!”. Não sei exactamente o que me passou pela cabeça. Não sei sequer se tive tempo de pensar “não acredito!”. Atirei o guarda-chuva à minha amiga – agora que penso nisso, acho que fui violenta… - e disse ao rapaz “diga-me o código, eu abro-lhe a porta”. Ele disse o código, errei de nervosismo, fiz de novo e abri-lhe a porta. Aqui em Paris, os prédios têm (quase) sempre duas portas. Ele pediu-me desculpa de novo e perguntou se eu podia repetir o código lá dentro. Avancei com ele, repeti o código e abri-lhe a segunda porta.
“Peço mesmo desculpa, sei que o pedido foi estranho mas…”
Respondi-lhe: “eu sei, eu sei, não se preocupe com isso”.
No inicio do ano, desenvolvi uma ligeira e pequena obsessão pela cultura judia. Li tudo o que encontrei pela frente sobre os judeus ortodoxos e li imenso sobre o Sabat. Sei que nesse dia, especialmente, no meio de dezenas de restrições, eles não podem tocar em nada que seja eléctrico. Então eu sabia que aquele homem – credo, que estavas a fazer na rua, afinal de contas? – não podia fazer o código dele para entrar, não poderia telefonar a ninguém para abrir-lhe a porta. Tinha apenas de esperar um milagre, ali mesmo, ou pedir a alguém que passasse na rua e que não fosse religioso como ele. Não sou judia, muito menos ortodoxa, mas sei que foi graças a tudo o que li que corri para ajudá-lo, completamente desesperada com a atitude que a minha amiga teve perante ele.
Voltei para a rua, recuperei o guarda-chuva e ela perguntou-me o que tinha sido aquilo. Expliquei-lhe sobre as restrições do Sabat, disse-lhe até que tinha lido que nos prédios dos bairros judeus mais tradicionais, em vez de subirem escadas durante o Sabat, o elevador para automaticamente em todos os andares para eles não terem de tocar em nada eléctrico.
Por momentos, pensei que a minha amiga não tinha compreendido o pedido. Ou tinha achado que ele estava a fazer-lhe um apanhado televisivo. Não somos todos obrigados a saber tudo sobre a religião dos outros. Mas depois de explicar-lhe tudo tintim por tintim, ela fintou “epa, que grande parvoíce”. Acho que os pêlos dos meus braços eriçaram. Algo em mim não aguenta, não tolera, não admite e não compactua com falta de respeito, julgamento desnecessário ou preconceito sem fundamento pelas tradições dos outros, sobretudo quando não é uma que seja nociva para com outra pessoa. Não estamos a falar de excisão, nem de apedrejar uma mulher. Estes são costumes mais calmos, restritivos e pessoais mas que não me impedem de viver nem vão contra os meus princípios. No fundo, ajudei aquele rapaz a entrar em casa, mas quem ficou mais feliz fui eu. Foi uma das melhores coisas que me aconteceu naquele sábado. E vai ajudar-me a distinguir o trigo do joio no que toca às pessoas que conheço. Não se pode esperar milagres de quem se revela bastante mal-(in)formado. Eu própria sou preconceituosa, racista e intolerante. Sobretudo com os que são preconceituosos, racistas e intolerantes para com os outros.
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